domingo - 29/12/2024 - 17:44h

A pessoa que faltava

Por Ivan Lira

Ilustração de crônica postada Instagram do autor

Ilustração de crônica postada no Instagram do autor

Gentil Alves da Silva foi, por muitos anos, o titular do único cartório de registro civil de pessoas de Doutor Severiano, uma pequenina e simpática cidade do oeste potiguar, na fronteira com o Ceará. O termo era vinculado à Comarca de São Miguel, onde fui Juiz de Direito e vivi tempos felizes na década de oitenta.

Seu Gentil era um tipo formidável: gordinho, de estatura mediana, com a cabeleira farta e um bigode bem cuidado. Vinha quase todos os dias a São Miguel, carregando processos de habilitação de casamento ou registros de nascimento fora de prazo, para receber o meu despacho. Colocava-se de forma discreta ao lado do balcão do cartório de Zé Rocha (à época não havia fórum, e o juiz atuava diretamente nos cartórios, sem espaço reservado), observando tudo atentamente.

Aos poucos, conquistou minha confiança e amizade, tanto que, algumas vezes, fui almoçar em sua casa. Confessou-se admirador da poesia popular e, bastante encabulado, mostrou-me alguns versos que havia escrito. A partir daí, de vez em quando, escondia entre os autos cartoriais umas quadrinhas, sextilhas e até décimas. Em seus versos, exaltava a natureza, as belezas da serra, as presepadas de um oficial de justiça “ad hoc”, as desventuras de um bêbado, a beleza das moiçolas e outras trivialidades.

Talvez preocupado com o meu doce exílio voluntário naquela distante Comarca, convidou-me para um baile em sua cidade. Fui, dancei e gostei. Algum tempo depois, repetiu o convite, mas, dessa vez, não pude aceitar, pois estava em viagem à capital.

Quando voltei, o pesar pela minha ausência foi traduzido em versos. Um deles trazia um neologismo que jamais esqueci: masculinizou o qualificativo “bacana” para não perder a rima. O mote era: “A pessoa que faltava era só Doutor Ivan”. E lá veio ele:

“Domingo teve uma festa
em Doutor Severiano.
Veio um grupo ‘bacano’
trazendo uma boa orquestra.
Muitas meninas passando
com as faces cor de romã,
e eu de longe observava
que a pessoa que faltava
era só Doutor Ivan!”

Ivan Lira é professor da UFRN, juiz federal e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL)

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Categoria(s): Crônica

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