Por Marcos Araújo
O nosso pai se chamava ARY. Não faço a menor ideia como o meu avô, um campesino e analfabeto, vivendo nos grotões do Seridó, possa ter registrado um filho com este nome. A única razão lógica da origem do nome, penso eu, é que se tratava de uma homenagem ao compositor Ary Barroso, nascido em 1903. Não há outro homógrafo “Ary”, com “Y” no final, antigo, que a história registre. Embora remanesça internamente também uma dúvida porque, em 1934, ano do nascimento de papai, Ary Barroso, com apenas 31 anos de idade, não tinha fama nacional. A canção pela qual ele ficaria famoso (o samba-exaltação “Aquarela do Brasil”), somente seria gravada e apresentada ao público em 1939.
De certo é que o homenageado ARY Barroso, mineiro de Ubá/MG, primeiro brasileiro a ser indicado ao Oscar (pela música “Rio de Janeiro”, do filme Brasil, de 1944), ficaria muito feliz com o seu antropônimo seridoense ARY Araújo, especialmente pelos qualificados dotes musicais. Afinação, ritmo e interpretação fizeram de nosso pai um cantor diletante. Com um pendor natural para a exibição de seus dons sem qualquer convocação. Seja na Padaria, no Supermercado, ou em qualquer lugar que houvesse público ouvinte, ele puxava um canto de inopino, causando surpresa aos circunstantes.
Em festas privadas – nossas ou de amigos, ele “sequestrava” o microfone, e emburrava-se na hipótese de o músico profissional contratado querer resgatá-lo. Cantava de tudo, mas sua preferência era por guarânias e boleros, tendo como ídolo Francisco Alves (o “Rei da Voz”).
Em 2015, nosso pai foi diagnosticado com câncer, impactando toda a família. Fui minimizado pela dor, na época, ao saber que seria pai de gêmeos. Em consenso com Carla, um dos neonatos foi batizado com o nome do avô, acrescido de Bernardo, em referência ao santo companheiro de São Francisco, de modo a pactuar simbolicamente a unidade com o irmão gemelar (João Francisco). ARY Bernardo é o nosso caçula, com a inegável transferência genética artística do avô.
O ARY (neto) logo nos primeiros meses/anos de vida demonstrou pendor pela música e pelo canto. De bebê embalado pelo ninar dos compositores clássicos instrumentais, engatou de logo suas primeiras palavras com as letras infantis do grupo “Palavra Cantada”, pulando em pouco tempo para o canto das músicas de Vitor Klein, Merlin, AnaVitória, Kell Smith, entre outros. Agora, seu “passeio” sonoro comporta apreço por sambistas da velha guarda como Ivone Lara, Beth Carvalho, Cartola, Nelson Cavaquinho e Arlindo Cruz, e os da nova geração a exemplo de Diogo Nogueira e Ferrugem.
Sofisticado nas preferências e um Lord no comportamento, seu gosto musical transcende a explicação humana. É sobrenatural. Um eflúvio do espírito. Outro dia, ele me apresentou a canção americana “Old Yazoo”, das irmãs Boswell (The Sisters Bolswell), de 1932. A letra fala de um lugar ideal (“Yazoo”) para se viver; um alento existencial como a Pasárgada de Manuel Bandeira.
Com a sensibilidade aflorada, acessa por vezes o Spotify do meu carro, a caminho do colégio, para ouvir um repertório que inclui “Retalhos de cetim” (composta em 1973 por Benito di Paula), ou “Corazón Partío”, de Alejandro Sanz (1998). A conclusão que se chega é de que um “velho” habita o corpo de um garoto de apenas 09 anos…
Seu apuro e harmonia vocal credenciaram-no a fazer parte – por uma temporada – do Coral do Colégio onde estuda. Claro que, sendo criança, recebe a influência do meio social, tornando-o um pouco eclético. Não causa nenhuma estranheza quando em dado momento ele está cantarolando Ana Castela ou MC Kevinho.
Aliás, eclético o seu avô também era. Mesmo não sendo do seu gosto primevo, nem de sua época, vez ou outra ele cantarolava “La belle de jour”, de Alceu Valença. Grandes músicos são sinfônicos. Gostam de todos os sons. A palavra sinfonia tem origem grega, significando “todos os sons juntos”. Ary Barroso associou, pioneiramente, o pandeiro a outros instrumentos de sua época. E não só isto: unificou sons, geografia e raças na sua Aquarela do Brasil. Como diz a letra: “Deixa cantar de novo o trovador / À merencória luz da Lua / Toda canção do meu amor …”.
Viva a música! Viva a sinfonia artística dos Arys!
Marcos Araújo é advogado, escritor e professor da Uern
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