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domingo - 28/06/2015 - 08:22h

“A última flor do Lácio”

Por François Silvestre

Vivemos provavelmente os tempos do colonialismo cultural mais acentuado da história dos povos.

É bem verdade que não é um fenômeno novo. Em todas as conquistas militares ou de colonizações, o colonialismo cultural sempre fez parte do pacote de dominação. Ou quase sempre. No caso da dominação árabe na península ibérica, houve uma exceção. Os nativos continuaram a professar suas crenças e preservar sua cultura.

O Brasil deixa-se colonizar culturalmente há muito tempo. É preciso ver que há diferença entre aculturação e desculturação. Na aculturação ocorre uma troca entre as culturas que se misturam. Caso exemplar é o sincretismo umbanda-catolicismo que se deu nas relações dos vindos da África com os nascidos daqui. Nesse caso, não há colonialismo cultural.

Outra coisa é a desculturação, quando uma cultura imperial impõe seus modos sobre a fraqueza da cultura invadida. O uso e abuso da língua inglesa, no mundo de hoje, é o exemplo mais nítido da desculturação.

E me traz à memória o diálogo de Próspero e Calibã, n”A Tempestade”, de Shakespeare: Diz Próspero: “Eras uma figura ignóbil e eu te dei compleição humana”. Calibã responde: “Mas a ilha era minha e tu me tomaste”. Próspero argumenta: “Mas eu te ensinei a minha língua”. E Calibã rebate: “No que a mim só serve para nela poder amaldiçoar-te”.

Nos tempos de hoje nem para a maldição dos dominadores a língua serve. Serve muito mais para a louvação. Para o embuste. Para consolidar a dominação, sob o manto roto do “progresso” e da globalização. O Globo são os outros. Estou falando do planeta.

“A última flor do Lácio” de que falou Olavo Bilac, onde Gil Vicente deu o tom da morfologia e Camões desenhou o esqueleto sonoro da sintaxe, vem sendo maltratada pelos nativos; deslumbrados com a luminosidade econômica das culturas alheias.

O jeito de falar ou escrever na literatura comporta “agressões” à língua, na medida do talento. Não se configura erro.

Contudo nos textos técnicos, opinativos, sobre qualquer assunto, a escrita que agride a língua não é justificável. Na televisão, dando notícias, ou comentando o noticiado, é preciso respeitar a língua. Não se faz literatura em noticiários. Cometem-se erros. Alguns de transformar os ouvidos em pinicos.

Os pobres verbos sofrem a diabo na boca dos repórteres. “Houveram atritos”, no lugar de houve. “Fazem dez anos”, no lugar de faz. “Ele reaveu o carro roubado”, no lugar de reouve. “O governo interviu”, no lugar de interveio. “A cartomante preveu”, no lugar de previu. “Se o governo propor”, no lugar de propuser. E por aí vai. Um horror…

Não se cobra pureza linguística nem chatice de regras. Não. O que se cobra é o mínimo de respeito com a nossa língua, maltratada por veículos que contribuem com o desaprender. Com a ignorância.

Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. jb diz:

    Sobre: “O uso e abuso da língua inglesa…” lembro de entrevista com Ariano Suassuna sobre dominação cultural.” Indignado, Suassuna cita como exemplos da dominação estrangeiras em nossa cultura o centro de comércio “Macambira’s Center”, cujo nome traz uma planta de regiões secas do nordeste, e até mesmo o nome de Chico Science -cantor e compositor recifense que morreu em 1997.”Eu gosto do que você tem de Chico, mas não gosto do que você tem de Science”, disse o escritor ao falar de sua relação com o músico. “Quando você se chamar Chico Ciência eu subo no palco com você.”
    No que concerne as “agressões” à língua um erro muito comum é confundir à custa que significa “com recursos ou dinheiro de; a expensas de; com o sacrifício de ”: Vive à custa da mãe. Com custas, no plural, que tem um sentido específico na linguagem jurídica – “despesas feitas em processo judicial”: O réu foi condenado a pagar as custas do processo. O que causa espanto é que na Tv os “textos técnicos ou opinativo” são da lavra de profissionais com “graduação” e “apenas um em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática” pois segundo o Índice Nacional de Analfabetismo Funcional-INAF 2012- o domínio de leitura: “Mesmo entre as pessoas com nível superior, o nível pleno fica longe de corresponder à totalidade, abarcando apenas a 62%.”Eis um motivo que explica o parágrafo anterior, segundo pesquisa do “Retrato da Leitura no Brasil:”Em relação à média dos livros lidos nos últimos três meses entre todos os entrevistados, aparece o índice de l,85 livro no total, sendo 0,82 inteiro e 1,03 em parte, desconsiderando-se, neste dado, se indicados pela escola, se procurados por iniciativa própria, o que aponta uma necessidade de se organizar ações no âmbito de uma política pública continuada e permanente para que seja ampliado o contato dos brasileiros com livros. É importante salientar que 0,82 corresponde à leitura de livros inteiros, sendo 0,81 indicado pela escola. Do total de 1,85, 1,03 foi lido em parte, sendo 1,05 deste último total lido por iniciativa própria.”

  2. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Caro François Silvestre, convicto da minha ignorância linguística, costumo sem nenhum cabotinismo, sempre e sempre repetir que… Não seio falar, escrever e nem ler corretamente, porém, tento dia-a-dia exercitar estes sentidos e ferramentas fundamentais ao processo de entendimento, compreensão, apreensão, reflexão e capacitação para o exercício da civilidade e quem sabe, melhoria do gênero humano.

    Tens razão quando demarcas que a nossa dita imprensa, além de manifestamente desinformar a sociedade brasileira sob o ponto de vista político, mais ainda aprofunda o quadro, degradante quadro de desculturação, não só quando dia-a-dia e de maneira sistemática nos impõe modas e modismo dos colonizadores – atualmente estamos sob a égide dos norte americanos – que vão dos fastidiosos e insípidos gerúndios quando temos que nos submeter aos atendimentos das empresas de telefonia, SAC etc., assim como, quando os nossos ouvidos são instados ao Português televisivo, sobretudo imposto pela massificação da Rede Globo em sua pretensa e fascista ideia de e homogeneização da nossa a língua, que há décadas vem descaracterizando não só a nossa língua e mais ainda malferindo os nossos regionalismos linguísticos e culturais.

    É um consenso que consideramos o nível de educação, sobretudo educação de boa qualidade em ritmo decrescente nos últimos anos. Talvez estejamos vivenciando o dilema histórico e ao mesmo tempo a chamada evidência do processo de universalização do ensino básico que historicamente foi negado à maioria dos brasileiros. Mas vejo também pessoas mais velhas e que tiveram acesso ao ensino básico, escrevendo errado (muitos professores, inclusive). A minha dúvida é: o aprendizado do português tem decaído nos últimos anos? Ou é a chamada “praga” da Internet que permite que esse enorme contingente de incultos se expresse de modo errado? Pois é possível que as pessoas escrevam realmente mal (desde sempre), mas como antes não era possível elas massificarem esta ignorância, simplesmente não se percebia.

    Um baraço e parabéns por mais uma vez, nos brindar como mais um leve, gostoso e ao mesmo tempo fecundo escrito.

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  3. jb diz:

    Digo, entrevista de Ariano Suassuna.

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