Algumas vezes me lamentei, no mais de forma íntima, por não possuir certas coisas e precisar me expor a certas situações. Todavia, por comodismo ou trapaça do destino, sempre vivi monasticamente, porém com o mínimo de dignidade. Disponho de uma saúde claudicante, é verdade, mas a minha dieta de psicotrópicos me mantém nos trilhos, apesar do efeito colateral do sobrepeso. De um modo ou de outro, enfim, pude contar em muitas ocasiões com a mão amiga de várias pessoas, figuras que considero irmãos de espírito e de coração. Nem todos podem contar com isso.
No Centro de Mossoró, como se estivesse indo em direção ao Alto de São Manoel, avistei aquela senhora de óculos e cabelos totalmente brancos em sua bicicleta, uma Monark verde-claro com para-lamas vermelhos, cujo ano não ouso presumir. De tão usada, a tal bicicleta pareceu-me ter a mesma idade da sua condutora. Isto é, cerca de setenta anos ou mais. Naquele horário de pico, então, com o trânsito agitado e perigoso, a brava mulher se deteve no semáforo na lateral da Riachuelo.
Eu batia pernas pelo comércio em busca de orçamentos para a aquisição de materiais hidráulicos para a minha casa (tudo pela hora da morte!) e deparei com essa idosa guiando sua antiga Monark. Isso me desconcertou. Por força da necessidade, obviamente, eis que uma pessoa como Maria do Socorro (vamos chamá-la assim) via-se forçada a se arriscar em meio a carros e motocicletas, exposta à falta de zelo e cuidado para com uma ciclista frágil, e decerto já sem os reflexos e a desenvoltura nos pedais quanto um indivíduo jovem. Maria do Socorro me pareceu ofegante.
De roupas comuns, trajava um short ou saia azul e uma blusa laranja desgastada, essa anônima personagem em meio ao trânsito feroz me dava a impressão de que seria abatida, derrubada a qualquer momento. Imaginei o quanto melhor seria se ela dispusesse de alguém mais jovem para acompanhá-la (quiçá num veículo motorizado) até o destino de seu interesse. Contudo, infelizmente, ali estava a referida velhinha Maria do Socorro se aventurando, sujeita a qualquer tipo de acidente.
Que Nossa Senhora dos Idosos a proteja!
Seu rosto, o de Maria do Socorro, tinha um aspecto humilde, resignado, cara de quem enfrenta outras privações e riscos em sua vida de mulher pobre e provavelmente integrante de família tão carente quanto ela. Sim. Duvido mesmo que alguém como Maria do Socorro, rifada em meio ao rio metálico de automóveis e motos apressados, estaria pedalando naquelas condições se tivesse outra opção. Eu próprio, que tenho menos futuro que passado, não gostaria de viver tal experiência. Não me vejo aos setenta anos ou mais guiando uma bicicleta em meio a tantos perigos.
Quando criança, por volta dos dez ou doze anos, eu suspirava por uma bicicleta, mesmo que fosse velinha como a senhora Maria do Socorro. Meu coração palpitava, sobretudo quando eu via aquele antigo comercial de televisão que dizia o seguinte: “Não esqueça a minha Caloi!” Quem lembra disso? Mas só pude adquirir uma bicicleta quando comecei a trabalhar de sapateiro, economizando cada tostão, e tive a minha carteira profissional assinada com meus quinze anos de idade.
Quem será Maria do Socorro? Qual o seu verdadeiro nome? Onde será que mora Maria do Socorro? Aquele cabelo de um branco encardido, os braços e pernas já bambos, flácidos, entre outros detalhes, infundiram ao meu coração um súbito sentimento de fraternidade. Por que não a interceptei e não me ofereci para ir guiando sua bicicleta, levá-la ao seu destino? Entretanto estanquei na esquina do extinto Cine Pax e deixei que Maria do Socorro fosse embora sozinha em meio aos carros e motos, correndo o risco de ser atropelada, derrubada no asfalto áspero e quente.
Que Nossa Senhora dos Idosos a proteja!
Marcos Ferreira é escritor
Belo texto cheio de imagens!
Obrigado amiga Fátima Feitosa. Um ótimo domingo para você e sua família. Além de muita inspiração para sua arte literária.
Que belo e emocionante “filme:”; torço para que Maria do Socorro tenha chegado ao seu destino incólume!
Um abraçaço do seu admirado
Meu querido Amorim. Grato por sua leitura e afeto. Um ótimo domingo para você, saúde e paz.
NR, admirador
Numa ousadia atrevo-me a contar uma “passagem” na minha vida de boêmia.
Estávamos ontem, eu e meu amigo Carlos, maestro e professor de música em um bar tomando umas e apreciando duas jovens , Alana e Luiza a cantar de uma forma cuja a maleabilidade vocal era de chamar a atenção do Professor, que virou a cadeira para frente das musas e ficou a admirando.
Logo depois ele me perguntou: o que você vai fazer Amanhã?
Respondi de pronto: sei não, quando acordar decido!
Achei que fui grosseiro, mas depois de muito refletir, falei com ele, não, não fui grosseiro.
Resposta de um boêmio ” que não tem a vergonha de ser feliz ”
Um abraçaço
Esse texto me provoca muitas sensações diferentes: A primeira, a admiração por uma velhinha que sabe andar de bicicleta; nunca consegui aprender. Depois de muitas tentativas e machucados, desisti. Outro sentimento é o de perceber a valentia de algumas pessoa: Dona Maria do Socorro é admirável! Outro ponto é o quanto a gente vive às pressas e depois fica se questionando se poderia ter sido útil a uma pessoa desconhecida; quase sempre, não temos tempo! Já experimentei esse sentimento de que poderia ter feito algo, o que só ocorreu depois da oportunidade perdida. E assim vamos carregando culpas que não são nossas! E se tivéssemos agido de forma diferente? Nunca saberemos! Que Dona Maria do Socorro continue sendo salva em cada esquina!
Mossoró já foi a cidade das bicicletas, hoje não mais… Porém, os ciclistas de antigamente resistem por necessidade, e enfretam o duelo desigual no tapete asfáltico. Abraços nobre poeta escritor, Marcos Ferreira!
Uma Maria necessitada de Socorro, na crônica triste e bela do poeta solidário.
Dona Maria é das antigas… Por certo, de ótima condição física.
Boa Noite, querido poeta!
Dona Maria é uma das muitas marias necessitadas de socorro no país de Mossoró, quiçá no mundo.. É um exemplo das muitas idosas, e idosos, que caminham, mesmo quando as pernas já não ajudam, sozinhas, por consequência do destino cruel, abandonadas à própria sorte pela família e pela sociedade.
Olhemos com mais carinho pelos nossos idosos!
Abraço carinhoso!