Por Marcelo Alves
No nosso último bate-papo, fiz uma defesa enfática da segurança jurídica – A psicologia da segurança jurídica -, alertando para a necessidade de normas estáveis e de uma previsibilidade ou mesmo de uma certeza, tanto para o presente como para o futuro, do que é o direito.
Entretanto, também reconheci que essa segurança jurídica deve ser sempre sopesada com a necessidade do desenvolvimento do direito. As coisas mudam. E devemos, não raras vezes, valorar tanto as circunstâncias em que o direito foi estabelecido como as em que ele está sendo valorado/interpretado. A alteração das circunstâncias pode nos impor soluções diversas em momentos diversos, conforme até já apontado, pelos antigos, na máxima latina “cessante ratione, cessat ipsa lex”, que pode ser traduzida como “cessando as razões para a existência da norma jurídica, ela deixa de existir por si própria”.
Na verdade, a sucessão de paradigmas legais, assim como de interpretações na aplicação de idêntico texto legal, é uma realidade social e jurídica, constituindo mesmo uma exigência de justiça. E o “engessamento” de um sistema jurídico é algo deveras preocupante. Um país cujo desenvolvimento do sistema legal/jurídico seja lento, tomado o termo desenvolvimento como alteração da regra jurídica para atualizá-la com as mudanças de valores, com o progresso da ciência etc., sofre também de um grande mal.
É aí que entra o papel da “boa” jurisprudência, sobretudo em um país, como o nosso, em que, muitas vezes, o legislador “se recusa” a legislar. Num contexto de relativa omissão/dificuldade legislativa, um sistema jurídico baseado unicamente na “sacralidade” da lei viria a ser terrivelmente estático. Não resta dúvida de que, sob condições sociais em alteração ou em áreas do direito para as quais a legislação não tenha sido atualizada, cabe muitas vezes à jurisprudência exercer o papel modernizador fundamental em busca de uma equidade material.
A experiência mostra que, no dia a dia, as evoluções e até revoluções jurisprudenciais são bem mais comuns do que as alterações na lei (até porque, como já sugerido, não é tão fácil alterar a lei). Quem milita com o direito processual civil (área do direito que foi, durante muitos anos, a da minha expertise), por exemplo, sabe disso muito bem. E, não por mera coincidência, muitas das alterações na lei processual vieram, em um segundo momento, inspiradas nas “antecipações” jurisprudenciais. Temos a nossa vanguarda.
De toda sorte, essa é uma realidade que, se guardada a devida razoabilidade na sua prática, tem muito mais aspectos positivos do que negativos, como outrora já ressaltavam Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão (em “Comentários ao Código de Processo Civil”, v. 5, Editora Revista dos Tribunais, 1998):
“Indubitavelmente a jurisprudência tem se antecipado às legislações na solução dos conflitos de interesses. Não poderia ser de outra forma porque a legislação é mais estática do que o juiz. A letra da lei perpetua-se, esperando a interpretação judicial quando suscitada nas controvérsias. No entanto, a evolução da sociedade é surpreendente. As relações humanas cada vez mais intensas impõem o chamamento judicial aos debates nos litígios, substituindo o código que, às vezes, tem contra si a revolta dos fatos na expressão de Gastão Morin. Mas o juiz não pretenderá ser o legislador, apagar os escritos legais, substituindo-os, mas sim adaptá-los à realidade, ao tempo e ao caso porque é impossível imaginar-se a lei solvendo todas as questões, as pendências, as dúvidas, no vasto emaranhado das interações sociais. Não foi sem razão a perspicaz nota de Seabra Fagundes sobre a posição do juiz brasileiro na aplicação do direito, concorrendo para o aprimoramento do direito como condição de paz e de justiça entre os homens. Aplicando a lei, adequando-a à utilidade social e ao bem-estar do indivíduo”.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
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