domingo - 18/10/2015 - 14:10h

Auto-retrato

Por François Silvestre

Essa coisa de auto-retrato é uma prática dos pintores. Tenho inveja deles, pois nunca consegui pintar um nariz de frente. Mesmo que D. Raimunda Barreto, minha professora primária no Grupo Almino Afonso, tenha tentado muito. Não teve jeito.

Depois, já no ingresso do segundo grau, um professor de desenho me disse que eu iria sofrer muito na vida por não conseguir compreender, fora do plano, um decaedro.

Já sofri muito na vida, não mais do que gozei, mas nenhum dos meus sofrimentos se deu por causa do decaedro incompreendido. Ou não rebater um poliedro.

Outra inveja, a música. Sou o que se chama no sertão um peido n’água, em matéria de afinamento. Afinação nula, ouvido rombudo.

E aí sobrou a escrita. Mesmo assim, precária. Vez ou outra descubro o decaedro pentelhando o desenho das frases e o ouvido desafinando a sonoridade metafórica.

Se fizesse um júri, nesse julgamento pessoal. Seria um promotor relapso e um defensor esperto. Como se estivesse jogando e roubando no jogo da paciência, do baralho.

A acusação: Sou vaidoso e me acho bonito. Fujo do espelho, pra evitar decepção. Sou pretensioso e me acho inteligente. Fujo dos intelectuais para evitar o desmentido.

Sou impaciente. Quando fui candidato fingi paciência pra ganhar votos. Não adiantou. Foi uma mentira ineficaz.

Não visito doentes, não vou a enterros nem visita de cova, não visito presos. E olhe que já recebi visitas na cadeia e nos hospitais. Só falta recebê-las no cemitério. Mas não tenho pressa; quem quiser pode ocupar meu lugar na fila.

Sou egocêntrico. Acho-me morando no centro do Universo, mesmo cercado pela minha própria estupidez e pela burrice nativa que me irrita e amofina. Giram em torno deste meu centro uma galáxia de passarinhos, fruteiras mortas, broqueiros idiotas e notícias ruins nos jornais televisivos.

A defesa: A ganância nunca me motivou. E olhe que a ganância honesta, de quem trabalha para justificá-la, não merece crítica. Merece aplauso. Mas não consegui fazer da ambição uma motivação de vida.

Não hospedei a avareza. Sempre fui esbanjador, mesmo esbanjando pouco, pois nunca tive muito. Se muito houvesse, eu seria generoso. Em sendo pouco, sou apenas estroina. Moderadamente, com cautela.

Dizia Sêneca que “ao avarento falta-lhe o que tem e o que não tem”. A única avareza respeitável é a do dinheiro público, exatamente onde o Poder que o guarda não o guarda. Rouba-o.

Tenho o maior número de melhores amigos do mundo. E desafio quem os tenha tanto quanto eu. E da minha família, não me exibo para evitar quebranto.

E assim dito, senhor Juíz, neste júri simulado, resta pedir a condenação. Para que, serenamente, a sentença reflita, na sua motivação, o direito negado às provas do acusador. Nos termos em que requer deferimento.

Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal

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Categoria(s): Artigo

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