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domingo - 07/09/2014 - 11:37h

Casamento de arranjo

Por François Silvestre

Num Domingo de 1896, a Fazenda Cajuais se enfeita para celebrar o casamento de Quinquim e Guilé. Os noivos se conheceram naquela semana, pois o casamento fora acertado quase oito anos antes, quando da Proclamação da República, que fez o Juiz de Martins, pai de Guilé, retornar a Fortaleza, onde passou a morar na Rua Sena Madureira, centro da Capital cearense.

O dia foi marcado por festa e desgraça. Logo cedo, um garoto, encarregado de cumprir uma tarefa, põe o pé no estribo para montar num cavalo arreado. Antes de passar o pé direito por sobre a sela, o cavalo assustou-se com o grasnar de um ganso e partiu em disparada; arrastando, pelo pátio frontal da Casa Grande, o menino com o pé preso ao estribo. Ao ser seguro o cavalo, o garoto jazia sem vida.

À noite, após a celebração, um desafeto esfaqueia outro, respingando sangue no vestido da noiva. Duas mortes no mesmo dia. Foi assim que começou a vida de Guilé, no sertão potiguar, após abandonar o Conservatório de Música de Fortaleza, onde estudava piano.

Tinha doze anos, quando o casamento foi ajustado; agora, casava aos vinte anos. Quinquim completara quarenta anos.

Quinquim mantinha três outros relacionamentos, com amantes em Viçosa, Caieira, atual Almino Afonso, e Catolé do Rocha. Não largou nenhuma das mulheres. E Guilé fazia de conta que não sabia.

Cada uma delas recebia, mensalmente, uma feira de víveres, que incluía carne seca, queijo de coalho, goma pra tapioca, farinha, feijão, arroz e rapadura. Era um segredo do Polichinelo.

Fecha o pano.

Vinte anos depois, em 1916, morre Quinquim, aos sessenta anos. Guilé tem quarenta anos, com vinte filhos, dez naturais e dez de criação. Para cada filho nascido, outro era criado. Além de agregados, meeiros, vaqueiros, serviçais de casa, Cajuais era uma urbe. Viúva, o filho mais novo com apenas um ano. Minha mãe, a penúltima, tinha três anos.

Quinquim nunca se deixou fotografar. Não se conhece a sua face. Nesse ano de 1916, foi tirada a última foto de João Antunes e Auta Rodovalho, com os filhos, genros e alguns netos. Guilé está de preto, ao lado do pai. Cópia dessa foto está aqui na parede de Cajuais da Serra e na Casa de Cultura de Martins.

Dos mais antigos do que eu, de ouvirem dos mais antigos do que eles, soube de um episódio bem marcante a definir o caráter de Guilé. Ela mandou emissários às três amantes do marido finado, indagando sobre a quantidade da feira mensal.

Ela decidira manter a mesma remessa, sem alteração.

A de Viçosa, Maria Lopes, única cujo nome eu sei, mandou a relação. E recebeu a feira mensal enquanto viveu. A de Almino Afonso deu silêncio por resposta. A de Catolé do Rocha mandou um recado desaforado: “Diga a ela para enfiar sua feira no rabo”.

Ao saber da resposta, Guilé soltou uma sonora gargalhada e comentou:

“Era com essa aí que ele deveria ter casado”.

mais.

François Silvestre é escritor

* Extraído do Novo Jornal

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. naide maria rosado de souza diz:

    Notável Guilé. Fibra e postura.

  2. Samir Albuquerque diz:

    Ótimo texto, gostei muito. Grande mulher!

  3. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Obrigado Meu Caro François Silvestre pelo ótimo Texto e a descoberta de uma grande mulher…Guillé.
    No caso, mais uma aula de história, e, sobretudo do saber contar de forma gostosa os saberes, dizeres e costumes de tempos e costumes familiares de antigamente, os quais muitos jovens, infelizmente nem sabem e muito menos intentam saber em sua ignorância e dependência de um medíocre cotidiano de Facebook, WhatsApp, Instagram, twitest etc.

    Um baraçõ

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  4. ALDENOR FERNANDES DE SOUSA diz:

    São amenidades do nordeste brasileiro.

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