domingo - 27/07/2025 - 07:44h

Cérebro e Celular – quando a extensão digital desafia o foco no volante

Por Luís Correia

Celular e volante, uma 'parceria' que não combina (Foto ilustrativa)

Celular e volante, uma ‘parceria’ de alto risco (Foto ilustrativa)

“Para ter o que chamamos de consciência básica é preciso ter sentimentos. Isto é, é preciso que o cérebro seja capaz de representar aquilo que se passa no corpo.”António Damásio

No cenário atual do trânsito, um dos perigos mais insidiosos e, paradoxalmente, mais aceitos, é o uso do telefone celular ao volante. Apesar das campanhas de conscientização e das penalidades legais, muitos motoristas ainda se arriscam a manusear seus aparelhos enquanto dirigem, seja para atender a uma ligação, responder a uma mensagem ou simplesmente verificar as redes sociais. As consequências são trágicas e bem documentadas: acidentes, feridos e mortes.

Mas o que leva a essa persistência em um comportamento tão arriscado? A resposta pode estar mais profunda do que imaginamos, enraizada na forma como nosso cérebro interage com essa tecnologia que se tornou uma extensão de nós mesmos. Este artigo explora a fascinante e perigosa correlação entre a neurociência e o uso do celular na condução veicular, revelando como a percepção neuronal do aparelho pode nos enganar e colocar vidas em risco.

O Cérebro e o Celular: Uma Nova Extensão Corporal?

A neuroplasticidade, ou plasticidade cerebral, é a notável capacidade do nosso sistema nervoso de se adaptar e reorganizar sua estrutura e função em resposta a novas experiências, aprendizados e até mesmo lesões [1]. É por meio dela que aprendemos novas habilidades, nos recuperamos de traumas e nos adaptamos a diferentes ambientes. No contexto da tecnologia, essa capacidade do cérebro assume um papel crucial na forma como interagimos com dispositivos como o smartphone.

Com o uso contínuo e onipresente do celular, nosso cérebro começa a incorporá-lo em nosso esquema corporal, tratando-o quase como uma parte de nós mesmos. Não é apenas uma ferramenta externa que usamos; ele se torna uma extensão de nossa mente e corpo, um repositório de memórias, contatos e informações que antes residiam exclusivamente em nosso cérebro [2]. Essa integração é tão profunda que, para muitos, a ausência do aparelho pode gerar uma sensação de desconforto ou até mesmo ansiedade, como se algo fundamental estivesse faltando. A neuroplasticidade permite que o cérebro crie novas conexões neurais que facilitam essa interação, tornando o ato de utilizar o celular um padrão comportamental “normal” e quase instintivo.

Essa percepção do celular como uma extensão do corpo não é apenas uma metáfora. Estudos e observações sugerem que o cérebro pode, de fato, recalibrar sua representação espacial para incluir ferramentas que usamos frequentemente. Pense em um músico que sente seu instrumento como parte de si, ou um cirurgião que manipula seus instrumentos com a mesma precisão e intuição com que usa as próprias mãos. O celular, para muitos, atingiu um nível semelhante de integração, tornando-se uma prótese digital que amplia nossas capacidades de comunicação e acesso à informação.

[1] Neuroplasticidade – Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: //pt.wikipedia.org/wiki/Neuroplasticidade [2] Opinião – O Telefone Celular é uma extensão do corpo humano. Disponível em: //lacosfaesa.com.br/2024/05/06/opiniao-o-celular-e-uma-extensao-do-corpo-humano/

Membro Fantasma Digital: A Síndrome da Vibração Fantasma

O conceito de “membro fantasma” é um fenômeno neurológico fascinante e, por vezes, doloroso, no qual indivíduos que sofreram a amputação de um membro continuam a sentir sua presença, dor ou outras sensações, como se ele ainda estivesse lá [3]. Isso ocorre porque o cérebro mantém uma representação neural daquele membro, e a ausência física não apaga essa representação cerebral. Essa persistência da percepção sensorial, mesmo na ausência do estímulo físico, oferece uma poderosa analogia para entender nossa relação com o celular.

No contexto do uso de smartphones, um fenômeno análogo tem sido amplamente documentado: a “Síndrome da Vibração Fantasma” ou “Síndrome do Toque Fantasma”. Quantas vezes você já sentiu seu celular vibrar ou tocar no bolso, apenas para pegá-lo e descobrir que não havia notificação alguma? [4] Essa experiência, comum entre usuários assíduos de smartphones, é um exemplo claro de como nosso cérebro se adapta e, por vezes, se confunde, com a constante expectativa de interação com o aparelho. O cérebro, acostumado a receber estímulos do celular, passa a antecipá-los, criando sensações que não correspondem à realidade física.

Essa síndrome não é uma doença, mas um indicativo da profunda integração do celular em nossa percepção corporal. Assim como o cérebro de um amputado continua a “sentir” um membro que não existe mais, o cérebro de um usuário de smartphone pode “sentir” um aparelho que não está vibrando, porque ele se tornou uma extensão tão intrínseca de nossa experiência diária. Essa “integração” pode ter implicações significativas para o comportamento e a atenção, especialmente em situações que exigem foco total, como a condução veicular.

[3] A Síndrome Do Membro Fantasma: Os Olhos Não Enxergam, Mas O Cérebro Sente. Disponível em: //www.ibnd.com.br/blog/a-sindrome-do-membro-fantasma-os-olhos-nao-enxergam-mas-o-cerebro-sente.html [4] Utilizar celular o tempo todo pode causar “síndrome da vibração fantasma”. Disponível em: //www.tecmundo.com.br/medicina/92409-utilizar-celular-tempo-causar-sindrome-vibracao-fantasma.htm

Atenção ao Volante: Um Recurso Precioso e Escasso

A condução veicular é uma atividade complexa que exige a plena atenção do motorista. Essa atenção pode ser dividida em três tipos principais: visual (manter os olhos na estrada), manual (manter as mãos no volante) e cognitiva (manter a mente focada na tarefa de dirigir) [5]. O uso do celular ao volante compromete todas essas dimensões da atenção, transformando o ato de dirigir em uma roleta russa.

Quando um motorista interage com o celular, seja para digitar uma mensagem, verificar uma notificação ou até mesmo falar no viva-voz, sua atenção é fragmentada. O olhar desvia da via, as mãos se afastam do volante e, o mais perigoso, a mente se ocupa com a tarefa secundária, perdendo o foco na condução. Essa distração cognitiva é particularmente insidiosa, pois mesmo que o motorista pareça estar olhando para a estrada, sua capacidade de processar informações e reagir a imprevistos está severamente comprometida.

Estatísticas alarmantes corroboram o perigo. O uso do celular ao dirigir aumenta o tempo de reação do motorista em até 50%, e a probabilidade de acidentes pode crescer em até 400%, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) [6]. A perda da visão panorâmica, a dificuldade em manter a faixa e a incapacidade de reagir a situações de emergência são consequências diretas dessa distração. No Brasil, a legislação de trânsito classifica o uso do celular ao volante como infração gravíssima, justamente pelos riscos que representa à segurança de todos [7].

A ilusão da multitarefa é um dos maiores vilões. Nosso cérebro não foi projetado para realizar múltiplas tarefas complexas simultaneamente com a mesma eficiência. O que percebemos como multitarefa é, na verdade, uma rápida alternância entre tarefas, o que gera uma perda de tempo e eficiência, além de aumentar a probabilidade de erros. Ao volante, essa alternância pode ser fatal. A cada vez que o motorista desvia a atenção para o celular, ele está, na prática, dirigindo às cegas por alguns segundos cruciais.

[5] Dirigir usando celular: entenda os perigos e consequências. Disponível em: //www.allianz.com.br/Blog/2024/dirigir-usando-celular–entenda-os-perigos-e-consequencias.html [6] Celular e direção: conheça os riscos dessa prática perigosa. Disponível em: //www.sjp.pr.gov.br/celular-e-direcao-conheca-os-riscos-dessa-pratica-perigosa/ [7] Celular no trânsito: quais os riscos e o que diz a lei?. Disponível em: //www.cobli.co/blog/celular-no-transito/

O Que Fazer? Desconecte-se para Conectar-se com a Segurança

Diante da profunda integração do celular em nossas vidas e da forma como nosso cérebro o percebe, a conscientização é o primeiro passo. Entender que o uso do celular ao volante não é apenas uma distração, mas uma desconexão perigosa com a realidade da estrada, é fundamental. Não se trata de uma simples infração, mas de um risco real à vida – a sua e a de outros.

Para combater essa epidemia de distração, algumas medidas simples e eficazes podem ser adotadas:

  • Ative o Modo “Não Perturbe” ou “Modo Carro”: Muitos smartphones oferecem essa funcionalidade, que silencia notificações e chamadas enquanto você está dirigindo. Configure-o para ativar automaticamente ao detectar movimento ou ao se conectar ao Bluetooth do veículo.
  • Guarde o Aparelho Longe do Alcance: Se a tentação for grande, coloque o celular no porta-luvas, no banco de trás ou em qualquer lugar onde não seja facilmente acessível. Longe da vista, longe da mente.
  • Avise que Está Dirigindo: Se estiver esperando uma ligação ou mensagem importante, avise a pessoa que você estará dirigindo e não poderá responder imediatamente. A maioria das pessoas entenderá.
  • Use Aplicativos de Bloqueio: Existem aplicativos que bloqueiam o uso do celular enquanto o veículo está em movimento, incentivando a direção segura.
  • Peça Ajuda: Se houver um passageiro, peça para que ele gerencie suas chamadas e mensagens. Delegar essa tarefa pode salvar vidas.

Lembre-se: nenhuma mensagem, ligação ou notificação é mais importante do que a sua vida e a vida das pessoas ao seu redor. A cada vez que você resiste à tentação de pegar o celular ao volante, você está fazendo uma escolha consciente pela segurança, pela vida e pela responsabilidade.

Conclusão

O telefone celular, uma ferramenta que revolucionou a comunicação e o acesso à informação, tornou-se, para muitos, uma extensão inseparável do corpo e da mente. A neuroplasticidade do nosso cérebro, que nos permite adaptar e integrar novas ferramentas em nossa percepção corporal, explica em parte a dificuldade de nos desvencilharmos do aparelho, mesmo em situações de risco. A “Síndrome da Vibração Fantasma” é um testemunho dessa profunda integração, onde o cérebro antecipa estímulos do celular, tratando-o como um membro fantasma digital.

No entanto, essa “normalização” do uso do celular se torna mortal quando combinada com a condução veicular. A atenção, um recurso precioso e escasso, é fragmentada em suas dimensões visual, manual e cognitiva, transformando o ato de dirigir em uma atividade de alto risco. As estatísticas são claras: o celular ao volante mata.

É hora de reconhecer que, embora nosso cérebro possa percebê-lo como uma extensão, o celular não pertence ao volante. A segurança no trânsito é uma responsabilidade coletiva, e cada motorista tem o poder de fazer a diferença. Desconecte-se do celular para se conectar com a segurança. Sua vida e a vida de outros dependem disso.

Luís Correia é agente de Trânsito, diretor de Mobilidade do Município de Mossoró, membro da Câmara Temática de Saúde para o Transito (CTST) do Contran e do Conselho Estadual de Trânsito

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Categoria(s): Artigo

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