Vez por outra, em virtude de algumas palavras um tanto ásperas ou indelicadas que ainda deixo escapar na minha escrita, sou carinhosamente repreendido por Natália, minha noiva. Ela receia que eu volte àquela época de bangue-bangue, quando eu me comportava como um selvagem da literatura norte-rio-grandense, apontando e fustigando impostores das nossas letras. Não faço mais isso. Todos são pessoas adultas e cada qual que responda pelas produções que assinam.
— Escreva coisas bonitas! — falou Natália.
— Por exemplo? — questionei.
— Algo que não acabe em polêmica, bate-boca na internet, desgastes à toa. As pessoas gostam de ler histórias positivas.
Emendei com uma ponta de ironia:
— Amenidades, você quer dizer.
— Sim! — admitiu. — Em tempos como estes, tão conturbados, precisamos ler mensagens de otimismo. Veja Odemirton Filho…
— E o que tem Odemirton?
— As crônicas dele são leves e bonitas.
— Estou de acordo. Enquanto cronista, Odemirton Filho não se mete em certas arengas, questiúnculas, provocações. É um reflexo da índole pacífica dele. Está muito mais para a natureza conciliadora do Rubem Alves do que para o temperamento ácido e iconoclasta do Agripino Grieco.
— Não faço ideia de quem seja esse Agripino.
— Então esqueça o Grieco. Quanto a Odemirton, trata-se de um cronista admirável, paz e amor, dono de uma escrita saborosa. Ocorre, no entanto, que a diversidade de vozes, temperamentos e estilos, enriquece a literatura.
— Sugiro que busque um meio-termo.
— É isso o que venho perseguindo.
— Cadê a produção? É sábado e até agora você não me apresentou nada. Já mandou a crônica para o blogue do Carlos Santos?
— Sim. Só falta a da Revista Papangu.
— Muito bom! Mãos à obra, então.
— O texto está bem encaminhado.
— Escreva coisas bonitas! — insistiu.
Não vai dar, amigos leitores. Não no presente instante. Não me sinto inclinado a produzir ou falar sobre amenidades nas condições emocionais em que ora me encontro. Sequer no tocante à poesia. Deixei um soneto pela metade desde o último domingo, faltando os tercetos. Até agora não reúno ânimo inspirativo para concluir o poema. Hoje desejo apenas que minhas janelas e portas continuem fechadas. Posso dizer que estou no meu momento vampiresco. Nada de sol, portanto. Não quero ver nem ouvir ninguém; celular no modo avião. Que nenhuma tranca ou ferrolho seja liberado. Que estas frias e negras cortinas continuem intocadas.
Penso em retirar da minha vista este impassível e burocrático relógio de parede. Como seria bom se pudéssemos imobilizar o tempo, de modo que as seis horas e quinze minutos desta manhã ainda agradavelmente fria perdurasse indefinidamente. É isso. Não me disponho a encarar o domingo lá fora, topar com os meus vizinhos, dar-lhes um bom-dia meio que a contragosto e desonesto.
Repito, minhas senhoras e meus senhores, que este não é um bom momento para amenidades, palavras edificantes, mensagens de ânimo, incentivo. Não da minha parte. Então me dou ao luxo de expressar fielmente o meu estado de espírito. Sem máscaras, sem disfarce algum. Nesse instante minha alma é este quarto penumbroso, um fastio que se estampa na minha face. Aqui usufruo da penumbra, do silêncio, do ócio e da quietude. Não escrevo para agradar nem desagradar ninguém.
Esta manhã encarcerou a minha veia bem-humorada, o meu sorriso fácil, continental. Reacende frustações e velhas mágoas, desaponta a musa e rompe as cordas da minha lira. Traz-me à memória recortes de sonhos mortos, projetos e planos frustrados. Contudo não descambo para o campo da autopiedade, ainda menos para a rentável literatura de autoajuda. Mas admito que estou cheio, farto da concretude da vida. Que se danem o lítio, a quetiapina e o divalproato!
Embora o dia seja de sol pleno, detalhe que não me agrada, sei que os pássaros continuam cantando os seus madrigais e as flores (perfumosas e concupiscentes) sorriem para os lindos colibris e borboletas que frequentam o meu quintal. Isso, no entanto, é poesia bucólica que ora não me seduz ou inspira.
— Escreva coisas bonitas!
Desculpem. Hoje não será possível. Deixo esta crônica pessimista, porém pacífica, livre de rusgas. Escrever também é isto: um dia estamos para cima, noutro estamos de ponta-cabeça. “Sugiro que busque um meio-termo”, aconselhara-me Natália. Quem sabe da próxima vez em que eu me ponha diante do teclado.
Meu mal e meu bem é este vício que me desfalece e me aviva, este sacerdócio que amaldiçoa e santifica, que me golpeia e me revigora: a literatura. Estou à disposição das suas vontades e caprichos. Teimo em não romper o véu da penumbra, em não abandonar o desalinho dos travesseiros e lençóis.
Marcos Ferreira é escritor
Marcos Ferreira, meu caro. Como já enfatizei anteriormente, agradeço pelas elogiosas palavras. Mas, como enfatizou, cada pessoa que se dispõe a escrever tem o seu estilo. E a beleza literária reside exatamente nessa diversidade.
Reitero a minha profunda admiração por você e pelos seus textos.
Receba um caloroso abraço deste seu amigo-aluno.
Acredito que não dá pra escrever sob encomenda; nem dá pra negar a própria essência. Na escola a professora dava temas pra redação com vistas a desenvolver a criatividade dos alunos. De todas as redações, uma ficou marcada, era pra falar sobre “Caco de vidro”. Conseguir conectar o tema e redigi. Sempre tive facilidade de expressar! Mas entendo o nobre escritor. Não dá pra se falar o que não vem do âmago. Assim como os dias são diferentes, nosso estado de espírito, passa por altos e baixos. Tem gente que sabe fazer as coisas pra agradar; isso não é de todo, ruim. Mas também não pode ser falso. Já passei por apuros por não saber “babar”. Não quero dizer com isso, que ser agradável, é ser babão. Uma coisa é fato: amo ler o que você escreve! Já li Odemirton no Blog, adoro os escritos de Rubens Alves. Cada um é cada um! Tentemos nos livrar das pressões que a vida em sociedade nos impõe. Entendo Natália! Ela o ama e quer ver você bem! Temas complexos roubam energia da gente. Mas seja você mesmo! Está de bom tamanho! Boa semana a você e a todos os leitores.
Caro Marcos Ferreira, que a penumbra e o desalinho dos travesseiros e lençóis, claro, continue até quando necessário.
Calha observar, que, não obstante esse estado de ânimo, ao fim e ao cabo nos brindaste, mais uma vez, com uma beleza de crônica, sobretudo verdadeira ao nos dizer da humanidade e da concretude com que escreve.
No caso, só temos que agradecer a sua Digníssima noiva Nathalia que com sua Benfazeja teimosia e ,claro, da intimidade e da oportunidade de questionamentos por ti metodicamente narrados, o que ensejou a contrução da crônica que nos enviaste com graça e enlevo neste domingo, apesar do aparente mau humor e estado de espírito.
Nesse contexto, imperativo lembrar que ao longo da história, tivemos nas companheiras de Marx, Jorge Amado, Machado de Assis, José Saramago ( Dentre inúmeros outros) , importantes contribuições a escrita, ao tempero e a construção das suas respectivas obras.
O fato é e que, com esse ou aquele estado de espírito e aparente mau humor, sempre nos brinda com o inegável talento da sua escrita.
Mais uma vez, obrigado Caro Marcos Ferreira e que vc e a Nathalia tenham um domingo de saúde e paz e um início de semana idem…!!!
Meu querido Marcos
Acredito que todo poeta tem seu lado introspectivo, há dias em que desejo ficar só comigo mesma envolta em meus devaneios e dúvidas interiores, aliás, todo ser humano necessita desse mergulho dentro de si mesmo a fim de descobrir e controlar os vendavais impetuosos internos que teimam em aflorar sem consentimento algum.
És parecido comigo nesta parte do silêncio, da timidez, do não gostar de chamar atenção; prefiro o ouvir, o meditar.
Amo os seus textos porque me identifico!
Beijos!
Um grande abraço, meu querido!
Gosto igualmente dos dois. A leveza pedagógica dos textos de Odemirton, e a complexidade e ” complicações” dos textos de Marcos Ferreira! Textos únicos e deliciosos!
O escritor é um espelho e reflete, projeta o que nele incide. Seja alegria ódio, tristeza, indgnação. Como dira João Cabral de Melo Neto: ” O escritor não pode faltar com a verdade” a sua verdade! Valeu poeta e escritor Marcos Ferreira.