Por Marcos Ferreira
Como você decide qual a primeira palavra a ser escrita? Ouvi esta pergunta recentemente e não me lembro quem me fez tal indagação. Talvez eu a tenha lido em algum lugar. Ou foi por telefone, em conversa com algum amigo ou amiga cujo nome, infelizmente, não me recordo para lhe dar o merecido crédito. Minha memória, repito, é firme quanto um Sonrisal num copo d’água.
O fato é que a primeira palavra, às vezes uma simples letra, um artigo masculino ou feminino, é responsável por todo o texto que está por vir. Sem essa largada, continuamos no zero, a página inteira em branco. Portanto, trata-se do gatilho, da espoleta, da fagulha que vai libertar todo o pensamento represado. No mesmo grau de importância considero o primeiro parágrafo de um texto. Poucos são os leitores que seguem adiante após um início de história ruim ou medíocre.
Como um anzol, digamos, você precisa fisgar o leitor já na largada, no comecinho da sua página. Esta que vemos em curso, por exemplo, também se submete aos ditames em questão: tem que atrair o interesse do leitor logo na saída. Dificilmente, numa livraria qualquer deste país e do planeta, o sujeito levará para casa uma obra que não conheça, a menos que se agrade do princípio.
Claro que isso de fisgar o leitor nas primeiras linhas é muito relativo. Em vários casos, ou na maioria deles, depende do gosto de cada pessoa por determinado estilo ou gênero literário. Mas vamos supor que você acabou de entrar numa livraria e, com grana para comprar apenas um livro, está a fim de adquirir algo novo, um autor e obra desconhecidos. É aí, pois, que o efeito azougue da escrita vai fazer a diferença, seja num romance, livro de contos, crônicas ou poemas.
Tem que ter aquela mensagem imantada, engenhosa, ou no estilo arrasa quarteirão. Seja por meio de uma frase poética, metafórica, ou através do velho recurso de tentar arrebatar o leitor à custa de um introito chocante, por vezes na forma de violência, como num disparo de arma de fogo, alguém que se lança do alto de um arranha-céu ou se enforca. Enfim, um cadáver já no abre-alas.
— Meu Deus! — podem se persignar.
A literatura nos oferece mil e uma possibilidades de narração de uma história utilizando o recurso de impactar o leitor. Sobretudo quando se trata de prosa fictícia, em particular nos romances e contos. Há autores, nacionais quanto estrangeiros, que praticamente escrevem com sangue as suas narrativas carniceiras, como Rubem Fonseca e Stephen King, para citarmos apenas dois. Outros nos atordoam pela surpresa e conteúdo insólito, feito o escritor tcheco Franz Kafka.
Para mim, que tenho verdadeiro horror a baratas, essa largada de A Metamorfose é um dos começos de novelas mais assustadores e inescapáveis da literatura: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Embora sem especificar o tipo de inseto, a descrição da barata é imagética e repugnante.
Um dos começos de livros mais aplaudidos, e merecidamente, é o do clássico Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez. Diz ele: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. E quem pode resistir e não seguir em frente na leitura após se deparar com as primeiras linhas de romances como Insônia e São Bernardo, do mestre Graciliano Ramos?
Não terem dado um Nobel a Graciliano foi uma grande injustiça, posto que tantos autores discutíveis levaram tal prêmio da academia sueca. Temos aqui, em solo tupiniquim, inclusive entre meus contemporâneos, literatura de alto nível. Outro gênio da prosa de ficção, o nosso insuperável Machado de Assis, abre o seu Memórias Póstumas de Brás Cubas com um parágrafo arrebatador:
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo”. Simplesmente genial!
Assim como o romancista, o contista e até o poeta, o cronista precisa fazer valer o seu reflexo de pescador. O peixe a ser fisgado, claro, é o leitor. A crônica deve ser atraente desde o título, que é o coadjuvante da isca, ou seja, as primeiras linhas. Ao contrário do que se dá com os livros nas livrarias, as crônicas expostas nos periódicos não contam com o chamariz de uma capa bonita.
— Mas ilustramos — dirá meu editor.
Sim. Porém o prezado leitor e a gentil leitora, que nem sempre concordam que uma imagem vale por mil palavras, esperam um texto que lhes salve o domingo (eis o nosso compromisso) da banalidade das páginas meramente jornalísticas, tão difundidas ao longo da semana. Deseja-se, então, que o cronista tenha algo de invulgar a oferecer, uma mensagem ou história (nem precisa ser real) que caia suave como os primeiros goles daquele café escoteiro tomado bem cedinho.
Daí a importância, num espaço tão eclético e ilustrado quanto o Canal BCS (Blog Carlos Santos) de nós cronistas botarmos a cara aqui todo domingo com uma narrativa capaz de atrair e manter o leitor interessado no que temos a contar. Tal conquista, volto a recordar, parte desde o título, mas, principalmente, ganha impulso a partir de um primeiro parágrafo de fato sedutor, cativante.
Isto significa que o final nem carece ser tão apoteótico ou estrondoso como um toque de gongo, contudo o leitor não costuma abrir mão de um começo arrebatador, envolvente. É aí, no mais das vezes, que está o sucesso ou fracasso do seu texto, seja ele um romance, um conto, uma crônica e até um poema mais longo. Você, por uma razão ou por outra, permaneceu comigo até este momento, e há de concordar com o meu raciocínio. Acredito, portanto, que iniciamos bem.
Marcos Ferreira é escritor
Sempre achei todos os começos, difíceis: primeiro dia de aula, de trabalho, de namoro, de tudo… Então, quando o assunto é escrever, o pontapé inicial vai definir a relação escritor/leitor. Contudo, quando se tem o dom da palavra, esse caminho é curto. Pra essas pessoas não existe tema difícil; a inspiração surge com amplas possibilidades. Vejo isso em você e, com receio de ser prolixa, repito, você é um ótimo escritor.! O semáforo está no verde: Siga!
Caro Marcos!
Simplesmente maravilhoso esse texto! Que delícia! Você consegue falar de como escrever um texto, ou iniciá-lo, para ser mais específico, sem se tornar enfadonho!
Escrever é um dom, que você esbanja de forma excepcional!
Beijos!
Já ouvi do próprio Marcos Ferreira que ninguém conta vantagem diante de uma folha em branco de papel. Mais que verdade, isso é característico de quem escreve com esmero e mantém-se fiel a sua humildade.
O talento desse rapaz é surpreendente porque ele diz em poucas palavras muito mais do que sente.
Caro Marcos Ferreira, bom Domingo, segunda , terça e todos os dias do porvir em nosso merecido começo de ano novo.
Especialmente, quando sem o Espantalho lá no Planalto mentindo,, cometendo crimes e dizendo asneiras e asnices…!!!
Obrigado por.nos brindar, mais uma vez com sua escrita ímpar com começo ,.meio e fim a nos proporcionar conhecimento do ato de escrever e quem sabe, até uma releitura dos clássicos enumerados…!!!
Realmente a isca, sua qualidade e ato de fisgar, são imprescindíveis em quaisquer pescaria, inclusive de leitores, sedentos não só de conhecimento, mas também de prazer e entretenimento.
Pois, como musical e brilhantemente nos brindaram os roqueiros dos Titãs , não queremos só comida, queremos e merecemos comida , diversão e arte…!!!
Um baraço
FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO
OAB/RN.7318
E que bom que é colaborar no Blog do Carlos Santos. Cronistas são sempre bem vindas e você meu caro, é exímio da primeira a última palavra. Somos gratos!
Todo começo é difícil. Dar o primeiro passo, “dedar” a primeira letra… Transformar o primeiro pensar em frases… Nada cai do céu. Ou cai?