Por Clauder Arcanjo
Agora habita o meu olhar
noturno este vazio estranho,
esta memória de chuva
que descolore o pôr do sol,
que emudece as palavras
e silencia o chocalho das horas.
Noturnos, os poetas se emudecem no silêncio das madrugadas, a fim de encontrarem a raiz poética, (re)encarnada na cumeeira do vazio.
Enquanto a cidade dorme, a poesia se apresenta, antes do nascer do sol, como oferenda legítima e mundana do (des)colorido atormentado da vida.
Pois não sou este espírito a esmo
Que me busca entre sombras e abalos
Na infinita procura de si mesmo.
&&&
Os passos
no corredor,
a luz acesa.
O perfume
da inocência
brincando
entre as mãos
pervertidas
do vento.
— Poeta Marcos Ferreira, há sempre em nós uma confissão tardia! — Assombra-se Carlos Meireles, entre palavras de pecado e farta remissão.
Eu olho para a parede alta e nua à nossa frente. Um fero obstáculo a nos usurpar da liberdade de flertar com a arquitetura das nuvens, de antever o bulício dadivoso dos arrebóis.
Apenas o céu
emoldurado
na janela,
a tia nas orações
— tateando
o paraíso
nas contas
encardidas
do rosário.
&&&
Perdi meu romantismo. Não sou mais
O amante, o cavalheiro, o menestrel
— O ingênuo cantador de madrigais.
O que se perde, Poeta, mais se nos (re)define. Defino-me mais pelo que abandonei, desrespeitoso com meus despojos, do que pelo que levo na algibeira das minhas certezas vãs.
Hoje, neste ranzinza habitáculo em que meu corpo habita, quero recobrar os meus românticos perdidos, mas o mundo, cruel engenho, já cuidou dos seus funerais.
A poesia só me encontra quando me perco, pecador por palavras, nos seus cruentos madrigais.
Estremeço à tua passagem
e meu olhar de chumbo
se afunda na ilusão movediça
do teu colo de aromas.
A tarde boceja envolta
num pijama de arrebol
e as últimas cardigueiras
desaparecem na linha
ensanguentada do horizonte.
&&&
Ontem voltei à rua dos
meus tempos de criança…
O fantasma do amor imberbe
atravessou-me num abraço diáfano.
Sobre a laje negra do asfalto
brincava o doido esqueleto
do meu cavalinho de pau.
A infância usurpa o nosso presente. De quando em vez, joga seus espectros em nossa frente. E, cabisbaixos e saudosos do ontem, caqueticamente, nos tornamos fantasmas do nosso passado.
Hoje, Poeta, esperarei a assombração do eu-menino com a roupa de homem, em frente à porta da frente. Se ele passar por mim e entrar… Bendito seja eu, Ferreira!
&&&
Acho que a velha casa
dos meus sonhos mirins
ameaçou um sorriso de janelas.
Ainda hoje sonho com a velha casa de Licânia. Entre os meus, colhido pelos tipos da rua, recebi as minhas lições de maior valia. Na nossa rua, não havia pobres nem ricos, existiam amigos e amigas. Gente boa, gente crédula, gente simples.
Cresci e me formei. E o mundo, Poeta, depois de Licânia, só me deseducou; e, hoje, não sonho mais com o sorriso do nosso janelão da frente. Lições de menos-valia.
— E quando retornarás a Licânia?, você me indaga.
E Licânia algum dia saiu de mim?! Se tu te referes a este meu esqueleto, ele será plantado na terra que me viu chorar, e muito sorrir no peito.
Mesmo que a luz
de nossas almas
se apague e o tempo
nos arraste para
o mundo das sombras
e da saudade,
haverá sempre esta
candeia de esperança
ardendo na solidão
lacrimosa do meu peito.
&&&
Ontem concebi
um poema
bastardo.
Cumpre-me agora
escrevê-lo,
pois larguei-o
entre as águas
do banho
e ele se afogou
na garganta
escura do ralo
Há versos concebidos na antevéspera do escarro; outros, na comunhão de um afago; alguns, não raros, no lusco-fusco da esperança. São raros os que resistem ao tempo, juiz cruel de muito enfado.
Não adianta te cercares das lições comezinhas dos vates de outrora, nem das homilias poéticas dos modernosos de agora, pois o poema, aprendiz de poeta, só se entrega (e se revela) a quem nunca o espera, e dele se torna um fiel escravo.
Um sopro de angústia vai movendo
as dobradiças do silêncio.
As teias do tempo se espalharam
por todos os cômodos e móveis.
Sequer o velho relógio de pêndulo
reagiu à minha súbita presença.
Vê, em frente ao teu espelho, o sopro lívido da tua última quimera se esvair por entre as nesgas do silêncio, e se acomodar nas engrenagens das horas extremas.
O mais é tudo sombra e frialdade.
&&&
É tarde… Um galo canta no vizinho.
Então ele retorna e continua
Os versos que deixou pelo caminho.
Levanta, Marcos, os raros leitores de poesia aguardam o recital do teu soneto esquecido na última tarde. O primeiro quarteto, em alexandrinos perfeitos, ultrajava a dor que te tornara forte; o segundo, rimado e bem urdido, decantava a flor que tu havias tido; o primeiro terceto, arejado e reverente, tecia a família que, de ti, se orgulhava. Já a última estrofe, Poeta, toma cuidado!, pois daqui antevejo o traquinas Chico de Neco Carteiro a tentar escandir-lhe os versos, com sua voz rascante de augusta e rutilante matraca.
É de lábios
e línguas
este anseio
que deriva
da curva
do teu medo
e se gruda
nos fios
do silêncio.
Na curva do arremedo, os poetastros cevaram os espectros dos seus pretensos poemas. De paletó e gravata, cercados de muitos festejos, eles se esqueceram de convidar a musa humilde.
Acharam, por certo, que, para eles, não havia segredo. Cumularam-se de saberes, outorgaram-se detentores de uma fama de araque… e se defrontaram, fatal desencanto, com o “poema” oco, perdido na tepidez funérea do vazio.
Abracei-a com força, mas não creio
Ter podido prendê-la muito assim…
Ela foi e eu fiquei ali no meio
Do silêncio noturno do jardim.
No silêncio da noite, sem a algaravia dos falsos arpejos, aprendi que a graça da poesia só nos alumbrará se riscada em laivos transparentes, pendidos, com a força solfejante da cola de uma mísera rima, sob a platitude lírica do abismo.
Não te maldigas pela sorte escassa
Nem pela vida muita vez tão dura…
Aqui no mundo nada sai de graça,
Ainda mais quando se tem ternura.
Quando a última ternura me caiu no colo opresso, nem percebi quando se deu tão sublime esmola, obrou-se o milagre de me ver em festa, quando todos lá fora se consumiam em desenganos.
E, se ao fim e ao cabo, tu, ternura, me tornares imprestável para a lida cotidiana, só me restará a lira… e a sina malsinada de me fazer poeta.
Hoje amanheceu bonito
Como fosse primavera…
Sem metáforas de sombra,
Nem pedaços de quimera.
&&&
Declaro, para todos
os fins que se fizerem
necessários, que não possuo
bem algum neste mundo
em que os homens
declaram a guerra
e sonegam a paz
E tu, Marcos Ferreira, cuida de assinar o teu último armistício poético; eu, por aqui, rabiscarei o testamento do meu degredo.
Entre os fulgores da morte, as sonegações da paz, nós, tortos poetinhas, finalizaremos o nosso espólio, declarando fé no amanhã, apesar do risco de sermos fuzilados por isso.
No coração da noite segue uma tristeza
Com passos muito lentos e desmotivados
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro A hora azul do silêncio, de Marcos Ferreira. — 2ª edição — Mossoró: Editora Verboletras, 2016.
Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras
*Texto originalmente publicado na revista Papangu
Belo texto, do escritor Clauder Arcanjo em homengen ao bardo Marcos Ferreira! Ave poesia!