Por Honório de Medeiros
Adolescente, recém-chegado a Natal, apaixonado por livros, não sabia por onde começar na biblioteca de minha tia, que me acolhera em seu apartamento lá pelos meados da década de 70.
Li muitos, ali. Alguns livros, várias vezes. Naquele tempo não havia celular, e a televisão engatinhava.
Dia desses me perguntei quais daqueles livros, alguns ainda em minha posse, hoje, me marcaram. Não precisei procurar tanto nos desvãos já meio empoeirados da memória. Foram três, não tenho dúvida.
Um deles é um clássico: “O Meio é a Mensagem”, de Marshall McLuhan. Na época, quando o li, não compreendi quase nada. Mas o conceito de “Aldeia Global”, um meme de McLuhan, fixou residência definitiva em meu cérebro.
Outro foi um romance de Rabindranath Tagore, “A Casa e o Mundo”. Uma estória de amor vivida na Índia, escrito com uma sutileza incomum, e uma prosa densamente poética.
Mas o fundamental, aquele que me marcou para sempre, foi “A Negação da Morte”, de Ernest Becker, que ao autor valeu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção Geral de 1974.
É traumatizante a leitura de “A Negação da Morte” para um adolescente. Muito do que li, quando o peguei pela primeira vez, também me era incompreensível. A custo, entretanto, de relê-lo muitas vezes, no período, e ir em busca na obra de Freud, que jazia completa, nas estantes de minha tia, à minha disposição, dos conceitos-chaves utilizados por Becker, terminei entendendo o núcleo de sua argumentação.
Para Becker o que é há de fundamental no ser humano é o medo da morte.
Esse receio, temor, medo, que está em cada um de nós desde que construímos nossas primeiras noções, é o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia. Agimos, em consequência, para reprimi-lo, construindo “mentiras vitais” que nos permitam enfrentar a morte sob a ilusão de permanência histórica e explicam, assim, a conduta do homem.
Uma delas, a mais importante, é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permite sobreviver na memória dos outros.
Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante de Sir Bertrand Russel que mina do seu “Power: A New Social Analysis”, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder.
Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político, mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.
A causa da existência do Poder, para Russel, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos.
Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder. Infinita essa busca, posto que o desejo humano não conhece limites.
Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual.
Como isso não é possível surge a instabilidade e a violência.
Em tempos mais modernos, a incessante busca por notoriedade substituiu o impulso pelo heroísmo.
Talvez haja uma forte distinção entre uma e outra calcada no caráter ético.
Enquanto no primeiro caso as ações parecem determinadas pelo narcisismo, no segundo pode haver o anseio de passar para a história pelos feitos realizados em prol de uma ideia de Bem.
Ou será que a causa primeira nada mais seria que o narcisismo?
O certo é que Becker criou raízes fundas em mim, seja pelo impacto de uma teoria que tudo explicava, mas nada devia a mitologias, seja pela angústia e prazer intensos que a tentativa de voar alto, nas coisas do espírito, origina.
Nunca mais fui o mesmo.
Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN
Amigo-irmão Honório; os mais chegados sabemos tratar-se da saudosa Professora Elza Sena, quando você cita sua acolhedora tia. Porém, por justeza de registro, seria bom nominá-la.
Abraço
Meu irmão David Leite, muito bem observado. Obrigado pelo conselho.
Um adolescente acolhido numa casa de livros. Que sorte!
O amigo David Leite cita, numa homenagem, o nome da tia da casa dos livros: Professora Elza Sena. Salve, Professora Elza Sena! Que sobrinho notável sua acolhida proporcionou ao mundo.
Dizia a minha mãe que, quando lembrava de mim pequena, eu estava sempre com um livro. Todavia, diferentemente do prof. Honório, a minha leitura tinha um cunho romântico. Não voei “alto, nas coisas do espírito”. Apaixonei-me pelas irmãs Brontë, Charlotte e Emily e me envolvi em Jane Eyre e no Morro dos Ventos Uivantes. Amei esses livros. Mergulhei em suas páginas. Marcaram a minha adolescência.
Caminhos literários diversos os nossos.
Ouso dizer que você voou sim, Naide. Chegou antes de mim nas irmãs Brontë e em Jane Eyre. Que belo percurso. Obrigado pela gentileza do comentário.