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domingo - 20/07/2014 - 08:56h

De pai e mãe: os meus

Por Honório de Medeiros

* Para Elza Sena, onde ela estiver.

Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o texto. Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos.

Um adjetivo é um instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta. Texto somente com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo, um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.

Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar; meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas. Completavam-se. Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre si falando.

Tinham longas conversas em silêncio. Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o gelo”, dizia ela.

Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração; ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, era minha mãe. Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.

Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.

Demonstravam afeto de formas bastante diferentes: mamãe abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos, perguntando, dando conselho, participando diretamente.

Papai somente me beijou uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos. Fiquei abismado.

Engoli meu choro. Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.

Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos meandros da fé.

Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e os santos de sua estima.

Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma empresa familiar de beneficiamento de algodão.

No final, dois aposentados, contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas contas bancárias no final de cada mês. Mas nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa, a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios.

Tinham, até mesmo, um fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do FGTS da aposentadoria de meu pai.

Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e morrer.

Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu pai. Terá sido ele feliz?

Acho que ter se afastado da sua viola amada, por injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da empresa onde era empregado, acentuou sua melancolia de nascença. Entretanto tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, esquivos, brilhavam quando chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.

Desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual minha mãe acredito e pronto. Ponto final.

Penso como Pascal: em crer, mal não há. Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha crença: a de que, em morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro de lavanda de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço enquanto dedilha a viola.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Rui Nascimento diz:

    Tive o enorme prazer de conhecer “seu” Chico Honório e Dona Aldeisa, duas pessoas maravilhosas que você, com o olhar de filho, tão bem descreveu. Aliás, mais do que conheci, pois frequentei muito aquela casa da Rua Francisco Ramalho.
    Ele meu padrinho de Crisma, pessoa de uma fineza indescritível, fala mansa, serena. Quando tinha oportunidade de visita-lo, conversávamos sempre sobre amenidades.
    Ela com sua personalidade forte, mas não menos educada.
    Foram amigos de longas datas de minha tia/mãe Jacilda, com quem tinha um estreito laço, quase familiar.
    Estudei o antigo primário na Escola 13 de Junho, ali na esquina da Francisco Ramalho, lugar do qual Dona Aldeisa foi diretora, com muita dedicação e competência, enquanto teve saúde, diga-se de passagem, pois ali era como uma extensão de sua casa.
    Não tenho o direito, nesse pequeno relato, esquecer de Maria Emília, uma filha que herdou as qualidades dos pais, como também de Maria “Brilhante”, pessoa carismática, que não tinha o sangue da família, mas que durante a existência de “seu” Chico e D. Aldeisa, foi uma companheira inseparável.
    Enfim, falar dessas pessoas é simples, como simples foi a vida dos dois, o que os tornou pessoas tão queridas por todos que, como eu, os conheceu.

    • Carlos Santos diz:

      NOTA DO BLOG – Impossível não me emocionar com seu relato, Rui. Já me emocionara com o “filme” textualizado por Honório nessa crônica. Uma vida que passou em minutos, à medida que meus olhos mergulhavam na leitura. Aldeíza e Chico Honório, o pai, fizeram parte de minha infância e idade adulta até. Eram diferentes como descrito pelo filho. Afetuosamente diferentes. Não custa, então, pensar que ainda estão por aí, com a Lavanda de um completando o sorriso do outro. Amém!

  2. David Leite diz:

    Amigo, salve!
    Na qualidade de afilhado de Chico Honório, entro na fila dos que se emocionaram com o seu texto…
    Eles merecem seu carinho em forma de crônica!
    Abraços
    David Leite

  3. naide maria rosado de souza diz:

    Que lindeza, Prof. Honório, visualizei seus pais…assisti-os e amei-os, a ponto de chorar e querer abraçá-los.
    Naide Maria Rosado de Souza.

  4. luis carlos diz:

    Uma bonita história. Um filho que saiu cedo e venceu,
    Exemplo a ser seguido.

  5. luis carlos diz:

    Um filho que saiu cedo de casa para o mundo e que venceu.

  6. AVELINO diz:

    Acreditar em Deus e pronto é uma das dádivas opcionais a que dispõe o ser humano de boa índole!!! Agora, quanto a existência Dele digo que apenas se sente enquanto ainda em vida nessa terra, pois para conhecê-Lo pessoalmente, estar com Ele olho no olho para se explicar, pra sanar todos os nossos questionamentos sobre, chegará esse dia, sim, está prometido, mas isso é coisa pra depois, bem depois, tomara!!!

  7. Honório de Medeiros diz:

    Rui Nascimento, Naide Rosado, Carlos Santos, David Leite, Luiz Carlos, não sei como lhes agradecer. Deus lhes abençoe. Que coincidência feliz: dois afilhados de Seu Chico deixando seus depoimentos.

  8. Marcos Araújo diz:

    Estimado Honório.

    Com saudade no coração e lembrança vivaz na mente, li a sua homenagem-texto. Não fui comensal dos seus pais, nem frequentador residencial, mas fui testemunha convival da fé deles.
    Quando fiz Cursilho da Cristandade pela primeira vez, há muito mais de duas décadas, seu pai era mensagista. Naquele retiro, falou com discrição e humildade, sem perturbação, da fé cristã. Desde então me tornei seu discípulo. Tinha uma sinceridade na voz e uma pureza na alma que cativava a todos. Sábio, controlava os seus sentimentos. Nunca vi perturbação na sua voz ou alternancia no seu tímido sorriso.
    De sua mãe, lembro o largo sorriso e a conversa alegre na calçada da Igreja São Vicente, ao término da missa das 07h do domingo.
    Um complementava o outro. Os dois serviram intensamente à Igreja do Cristo. Deram exemplo edificante a todos nós!
    Fica o meu registro. Já havia escrito uma cronica para o seu pai.
    Feliz na minha vida por conhecê-los.

  9. Honório de Medeiros diz:

    Marcos, amigo, vc, Carlos Santos e Rui Nascimento me permitiram mitigar a saudade com a generosidade de seus corações. Muito obrigado. Nada tão importante, para mim, quanto essa demonstração de afeto, tão desinteressada, que vcs deixaram neste espaço. Se eles são como vocês descreveram, o olhar de vocês, ao percebê-los, os torna, também, diferenciados.

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