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domingo - 29/09/2024 - 05:32h

Dois sapateiros

Por Marcos Ferreira

Marcos Ferreira e Ayala Gurgel (Foto: José Arimatéia)

Marcos Ferreira e Ayala Gurgel (Foto: José Arimatéia)

Conhecedor de uma boa parcela do meu histórico de apuros, especialmente no tocante à minha experiência e de meu pai enquanto sapateiros, na última quinta-feira, 26, recebi aqui na Casa Branca da Rua Euclides Deocleciano, 32, o versátil artista Ayala Gurgel. Além de escritor premiado, é um pintor de valioso talento. Fui presenteado por ele com uma arte personalizada, óleo sobre tela no tamanho 40×50, onde vemos um sapateiro desempenhando o seu ofício com um menininho ao lado, imagem dedutível como a de um filho auxiliando o pai na referida atividade.

Nascido em 1971, Ayala é natural do município potiguar de Alexandria. Escritor prolífero, contista, romancista sempre com lastro na temática do sertão, tem vasta formação acadêmica, com passagem por importantes universidades brasileiras. Entre outras especializações e habilitações, é doutor em Políticas Públicas e Filosofia. Ele é professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) desde 2014. Possui experiência no campo da Filosofia, sobretudo em Ética, Bioética, Tanatologia e Saúde Mental. Atualmente, além da literatura e das artes plásticas, desenvolve pesquisas na área de filosofia da linguagem ordinária e teoria da argumentação.

O pai de Ayala, que está com oitenta e três anos, também foi sapateiro. Algumas obras do autor estão expostas na pinacoteca da Ufersa. @ayalagurgel é seu contato no Instagram.

Comecei com apenas dez anos de idade ajudando meu pai, o sapateiro Vicente Ferreira. Primogênito de uma prole de onze irmãos, e com nossas finanças descompensadas pela inflação, era de se esperar que o filho mais velho seguisse o genitor na faina da sapataria. Assim, como na letra do Milton Nascimento, coloquei o pé (as mãos, aliás) na profissão. Eu não tinha carteira assinada, obviamente. Isso só aconteceu no dia primeiro de março de 1986, estando eu com dezesseis anos incompletos. O cargo? Auxiliar de apalazamento; palavra inexistente nos dicionários.

Não havia nesse tempo essa coisa de que criança não pode trabalhar. Eu (assim como os demais) dava expediente das sete às onze e das treze às dezessete e trinta. Não raro, porém, acontecia de estarmos com muitos pedidos e aí todos fazíamos plantão até as nove ou dez da noite. Isso melhorava o salário.

Naquela época, início dos anos oitenta, ainda existiam em Mossoró algumas indústrias e fabriquetas de calçados. Depois, com a pesada concorrência da produção em série das grandes empresas do ramo, as fábricas não suportaram e começaram a falir, a exemplo da Indústria e Comércio de Calçados Arruda Ltda., situada à Rua Adauto Câmara, 154, empresa essa onde trabalhávamos. Devo dizer que possuo uma memória pouco confiável, com a durabilidade dum Sonrisal num copo d’água, como já falei noutra oportunidade, mas certas coisas continuam intactas na minha mente. Consigo lembrar, por exemplo, o cheiro do couro e de alguns tipos de cola.

Ainda analfabeto com onze anos de idade, fui matriculado no Instituto Dom João Costa, onde hoje funciona o Centro de Práticas Múltiplas Dom João Costa. O mingau de milho com coco servido ali na hora da merenda era uma verdadeira delícia. Concluí a quinta séria primária e depois abandonei o colégio, novamente impelido pela necessidade de contribuir para colocar comida em nossa casa.

Alguns anos depois retomei os meus estudos, desta feita na Escola Estadual Hermógenes Nogueira da Costa, no Abolição IV. Ali concluí o sétimo ano. Por essa época as sapatarias já haviam quebrado e eu e meu pai nos tornamos faz-tudo. Eram ocupações de toda sorte que agora não me disponho a narrar. A fome se agravou na casa dos Ferreiras e tivemos, como se diz, que matar um leão a cada dia.

Tudo isso são águas passadas! Hoje, como feliz recordação dos meus anos como sapateiro ao lado do meu pai, tenho essa bela arte em tela produzida pela sensibilidade do meu amigo das letras Ayala Gurgel. Muito obrigado!

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Política

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