Vou pegar um gancho no nosso último papo (veja AQUI) – sobre “Antígona” (441 a.C.), de Sófocles (497-406 a.C.) – e falar sobre “Édipo Rei” (429 a.C.), outra famosa tragédia do mesmo autor.
A narrativa/mito de Édipo é bastante conhecida (e notadamente desenvolvida na psicanálise de Sigmund Freud). Filho do rei tebano Laio, Édipo, ainda bebê, foi deixado para morrer, pois o seu destino era, segundo o Oráculo de Delfos, matar o próprio pai e desposar a mãe. Mas é salvo por um pastor. Já adulto, entre Corinto e Tebas, mata um velho homem. Chega a Tebas. Responde a um enigma proposto pela Esfinge. Salva a cidade. É feito rei, casando com Jocasta, sua mãe e viúva de Laio, assassinado misteriosamente.
Anos após a realização da profecia, e Édipo sendo rei de Tebas, uma peste castiga a cidade. O Oráculo de Delfos, segundo consultado por Creonte (que sucederá como rei), vaticina que, para salvar Tebas do sofrimento, é necessário descobrir e punir o assassino de Laio. Édipo promete aos cidadãos da pólis encontrar e punir o homicida. E é a partir deste ponto da estória (já pedindo desculpas por algum spoiler feito), que passo a desenvolver o argumento desta crônica.
O meu mote vem de uma observação de Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto, no texto “O teatro e a história do direito: a experiência da tragédia grega”, constante do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas” (Livraria do Advogado Editora, 2008), no sentido que, em “Édipo Rei”, o leitor verá a origem do dito romance policial ou detetivesco. Segundo o autor, “a busca de Édipo pelos assassinos Laio – crime que, impune, causa o mal que abate Tebas – tem todos os ingredientes de uma investigação conduzida por um detetive.
Édipo procura reconstituir a verdade dos fatos, ouve testemunhas, confronta relatos, concebe e afasta hipóteses, envia mensageiros para coletar informações e reúne todos os elementos obtidos em sua busca para formar a convicção acerca da identidade dos responsáveis. Quando consegue obter a verdade, Édipo constata a existência de apenas um responsável – o próprio Édipo. Suprema manifestação da ironia trágica”.
Ademais, embora o texto “O teatro e a história do direito: a experiência da tragédia grega” não seja explicito quanto a isso, podemos também traçar, a partir de “Édipo Rei”, a origem ou o conceito de um mui específico subgênero da literatura (e do cinema), a “ficção de tribunal” (“courtroom drama”), uma vez que, nas palavras do seu autor, “o diálogo em que Édipo e Tirésias se enfrentam é, nesse sentido, paradigmático. (…). No confronto entre Édipo e Creonte, a investigação é ainda mais complexa, pois envolve suspeitas acerca do interlocutor (Édipo vê indícios de conspiração no comportamento de Creonte). Como observado por Knox, a cena, ‘em sua economia metódica, assemelha-se a procedimentos típicos de uma sala de audiência’”.
Convencionalmente falando, existem os “culpados de sempre” quanto ao pioneirismo sobre o que hoje categorizamos como ficção policial/detetivesca. O inglês William Wilkie Collins (1824-1889), autor de “The Woman in White” (1860) e de “The Moonstone” (1868). O estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), criador do detetive Auguste Dupin, que protagoniza “The Murders in the Rue Morgue” (1841). E o francês Émile Gaboriau (1832-1873), autor “L’Affaire Lerouge” (1866), “Le Crime d’Orcival” (1867) e do detetive-título “Monsieur Lecoq” (1869).
Acredito que a ficção de tribunal ou “courtroom drama”, assim como a ficção detetivesca, seja uma subdivisão do gênero ficção jurídica (embora essa questão de gêneros e subgêneros na literatura seja deveras polêmica). Como “courtroom dramas” podemos classificar os romances/peças/filmes cujas estórias se passam perante uma corte de justiça em funcionamento, com seus atores (advogados, promotores, juízes etc.) realizando suas performáticas peripécias jurídicas. Em regra, há um pano de fundo filosófico na tensão entre a falibilidade do sistema (ou da “justiça humana”) e a descoberta do que é a “verdadeira Justiça”.
Daí em diante, as coisas variam bastante. E enredo pode até focar na figura de um rei/juiz/detetive/culpado, como é o caso, poeticamente, de “Édipo Rei”.
Bom, sou chegado a convenções. Vou colocar “Édipo Rei” não como um fundador, mas como um precursor dos romances policiais. Um vanguardista, um inspirador. E vou também classificá-lo no subgênero da ficção de tribunal. A sua trama no “palco” da justiça me encanta muito mais de que qualquer audiência numa “sala” de justiça. Sófocles e “Édipo Rei”, nos comovendo e inspirando há séculos, cada vez mais cumprem os seus destinos.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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