Por Carlos Santos
Boêmio convicto, o jornalista-compositor pernambucano Antônio Maria cunhou uma frase que virou um culto à boa vida noturna carioca, que ele aproveitou intensamente, sobretudo nos anos 50: “A noite é uma criança”.
É verdade. Eu já a embalei muito e a conheço bem. Contei estrelas sob seu teto, tangi-a por aí, sem destino. Com seu consentimento eu bebi todas, bradando aos quatro cantos a minha felicidade.
Para Cazuza, “o banheiro é a igreja de todos os bêbados”. À noite, é também o vômito espalhado no chão, o batom na gola da camisa, recanto das mais sórdidas confissões e daquele inescapável último pingo na cueca.
“À noite todos os gatos são pardos.” Tenho minhas dúvidas. Muitos cintilam e reluzem, para morrer aos primeiros raios de sol da manhã. Outros têm cores próprias e se renovam ao amanhecer. Tem sete vidas.
Na verdade, a noite tem o poder de revelar pessoas, isso sim. Mas elas não são melhores ou piores por causa da noite. Nem adianta culpar a bebida por sua imagem lasciva declarada, longe da identidade diurna.
A “persona” (máscara) não cabe em qualquer um, é bom que fique claro. Ela se esconde na maquiagem borrada, na moral encardida.
Hemingway disparou: “Paris é uma festa”. Tem sido assim há décadas. E a noite?
Temos muito de Paris, do Sena que nos corta à Bastilha que nos prende. A Champs Élysées que parece infinita é como aquela noite que nunca devia acabar, de tão boa.
A “baladeira” (rede) me aguarda dadivosa. Tadinha, tão surrada, mas acolhedora. A noite engatinha e o sono não chega. É como meu novo bebê, vivo num imaginário dividido e partilhado, pronto para nascer. Estou à sua espera infinitamente.
O que seria da humanidade pós-moderna se não fosse Twitter, MSN, Facebook etc.? Sobreviveria, lógico, mas assim mesmo quero ir para Pasárgada. Sem querer ser esnobe, vou logo avisando: lá não faço questão de ser amigo do rei.
Sou velho mesmo. Do tempo que puxava o sono ouvindo a Rádio Mundial, folheava a Playboy às escondidas, com olhar rútilo, jogava conversa fora à calçada para engolir as horas e fazia do sarro o ápice do “amor”.
Bom tempo.
Sou do tempo que a madrugada insone, de boemia inocente, terminava no Mercado Central, na esquina de casa, na praça com o sol dando “bom-dia”. Feliz pela camisa amarrotada, por sentir outro perfume no corpo ou conformado com a solidão de muitas vozes ininteligíveis, sem que umazinha sequer me acalentasse.
Saudosista? Não. Vivo hoje o melhor dos meus dias terrenos, sem medo de olhar para trás e enxergar minhas próprias pegadas.
O meu tempo não é o da saudade. Fico a falar do que passou, porque passou sem ir embora. É como aquele livro bom, socado entre outros na estante, que a gente sempre consulta numa releitura que se renova.
É, muitas vezes, um volver para rir das próprias desgraças. Passeio por desventuras próximas as de “Geraldo Viramundo”, personagem de Fernando Sabino, sempre envolto em situações picarescas e estapafúrdias. Um Dom Quixote sertanejo.
Ah… e se eu fosse poeta? E se tivesse um violão? Não quero nem pensar. A sarjeta seria minha pátria. Bardo solto por aí, crente na imortalidade, não estaria aqui, balbuciando essas palavras. A noite teria minha vigília permanente à janela de Rapunzel.
Talvez fosse “um menino passarinho, com vontade de voar”, como escreveu Luiz Vieira. Até pediria que copiassem o próprio Sabino com um etipáfio parecido àquele posto em seu túmulo, para fechar minha história:
“Aqui jaz Carlos Santos, que nasceu homem e morreu menino”.
Boa noite. O sono chegou.
São 3h15… zzzz!!!
Carlos Santos é criador e editor do Blog Carlos Santos (Canal BCS)
*Texto originalmente publicado nesta página no dia 13 de fevereiro de 2011 (veja AQUI).
Excelente texto. E aí? O epitáfio é o mesmo? Continua menino?
NOTA DO BLOG – A ideia é morrer jovem o mais tarde possível. Abração e obrigado.
Sensacional! Uma excelente crônica para a imortalidade.
Também sou notívago. E insone. Cada doido com sua mania…
Tenho amigos que são diurnos, e alardeiam como anormais os que não dormem bem e varam as madrugadas. Lembrando Drummond, “ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar”.
Cá das minhas bandas, adoro ouvir os sons que vem da madrugada, o barulho externo que atravessa a minha janela, calando o silêncio que vem dentro de mim…