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domingo - 08/10/2023 - 12:14h

Ética jurídica e literatura – uma boa mistura

Por Marcelo Alves

Ilustração da página Direito ao cinema

Ilustração da página Direito ao cinema

Havendo proposto, na semana passada, o estudo interdisciplinar da ética jurídica com a literatura/cinema (veja AQUI), venho hoje fazer uma defesa dessa curiosa mistura. Especificamente, pretendo responder à dúvida básica que deve estar na cabeça de vocês: por que os profissionais do direito devem estudar ética jurídica através da literatura/cinema? Há alguma utilidade nisso?

Sem titubear, minha resposta é sim. E por vários motivos.

Antes de mais nada, o contato com a boa literatura é fundamental para o aprimoramento do discurso jurídico, sobretudo a capacidade de escrever dos profissionais do direito, incluindo aqui bacharelandos, advogados, promotores, juízes, legisladores e por aí vai. Para escrever bem, é preciso, ou pelo menos muito recomendável, ler bem. Isso sem falar que ler boa literatura é algo muito – muitíssimo mesmo – gostoso (certamente bem mais que os enfadonhos tratados jurídicos). Aqui já ganhamos duplamente.

Ademais, já sendo mais específico, a literatura/cinema testemunha a visão sobre o mundo jurídico existente em determinada sociedade em certa época (embora marcada, em boa medida, pela ótica particular do autor da obra estudada). Esse testemunho é bem mais acessível/compreensível aos leitores (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que a sociedade tem de seus atores/profissionais do direito, do que os áridos estudos jurídico-sociológicos de caráter estritamente científico.

Mesmo em se tratando de obras estrangeiras, podemos nos valer da análise comparativa para conhecer melhor a imagem que a literatura e a sociedade brasileiras fazem da nossa atividade jurídica e dos seus profissionais. E vale a pena estudar ética jurídica através da literatura/cinema porque a (re)construção ficcional dos operadores jurídicos pode ser um incentivo para que os estudantes e os profissionais do direito reais (juízes, promotores, advogados, policiais etc.) repensem – e, por consequência, reconstruam com aprimoramento – os seus papéis e as suas imagens na sociedade.

Doutra banda, na literatura/cinema, há inúmeras estórias que enfrentam e resolvem eticamente problemas jurídicos. Os grandes autores/diretores relatando a casuística da vida forense, dos escritórios de advocacia ou das prisões, em linguagem mais elegante e acessível do que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente excelentes professores de direito. Aliás, vale a pena estudar o direito/ética jurídica através da literatura/cinema porque, na medida em que haja uma correspondência entre a obra estudada e a realidade do mundo jurídico (o que nem sempre se dá, já que estamos falando de obras de ficção), o estudo do direito, partindo da casuística narrada, torna-se menos abstrato.

Outrossim, a ficção, ao mesmo tempo em que reproduz (além da concepção particular de seu autor) o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas ético-jurídicas, também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes, com a moda etc.), a literatura e o cinema são subversivos, tanto para a filosofia do direito como para o direito positivo. Não é de causar espanto que esses “críticos” tenham antecipado muito das modernas teorias e tendências do direito (tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc.).

De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão, denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P. MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007).

Por fim, concluo afirmando que, com os grandes autores, com suas belas estórias, aprendemos que o direito não é um fim em si mesmo, isolado do mundo; ao contrário, ele faz parte da vida cotidiana, que é carregada de dramas bem reais. Alguns até acreditam ser essa a principal razão pela qual a literatura – e a arte em geral – interessa ao direito.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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Categoria(s): Crônica

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