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domingo - 09/04/2023 - 04:38h

Fatalidades

Por Marcos Ferreira

Hoje, exatamente hoje, completam-se dois anos da trágica morte de um pardal aqui na minha rua. “Que fato irrelevante!” Protestará alguém pregueando a testa, um cristão ou cristã cuja existência é tão concreta e objetiva quanto as quatro operações de aritmética; ciência exata que por anos me assombrou.

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Entre outras coisas, jamais me dei bem com os algarismos. Mas isso nunca foi novidade.

Bom. Eu falava sobre a morte do pardalzinho. Ocorreu no fim de uma tarde de sábado, 9 de abril de 2021, horas antes do meu aniversário. Sim, aquilo foi uma tragédia. O coitado não teve a menor chance de empreender fuga. Pousou perto do arame farpado. Eu estava na calçada com uma pequena xícara de café. Assisti a tudo. Fiquei perplexo, o coração aos pulos. Súbito um gato marrom irrompeu de dentro do mato que encobria parte da cerca do terreno e capturou aquele ser alado.

Embora eu tenha instintivamente emitido um grito no intuito de assustar o bichano e ele largar o pobre do pássaro, não pude fazer mais nada. Depois de cravar suas unhas e presas na vítima, logo o felino arrepiou carreira, escafedeu-se rapidamente por entre o matagal e eu fiquei estático, a boca semiaberta.

Por causa do meu aniversário, como podem concluir, gravei essa data na memória. Dali há mais treze meses seria a minha vez de me despedir deste plano físico. Fui vitimado por uma bala perdida quando da troca de tiros entre integrantes de uma facção criminosa e homens da Força Nacional.

O tiro, disparado não sei por qual dos lados, entrou pelas costelas e atingiu meus pulmões. Fui socorrido pelos policiais, levado à urgência do Hospital Regional Tancredo Neves, aqui em Vila Negra, mas era muito tarde. Quando acordei eu já estava num caixão, sendo velado em casa.

Presenciei a minha família em lágrimas. Pude sentir o cheiro das velas e das rosas. Vizinhos entravam e saíam, contudo ninguém se apercebeu da minha presença. Meu rosto estava lívido, empalidecido, os dedos cruzados sobre o peito. Não pude ver, claro, o ferimento das costelas. Hoje, enfim, eu me lembro do pardalzinho. Desde então vago a esmo em meio a uma incalculável multidão sem matéria.

— Sinto muito! — talvez alguém diga.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Ricc Fonseca diz:

    Bom dia!

    Interessante… principalmente no tocante ao título e também quando o talentosíssimo Marcos Ferreira faz alusão aos cristãos traçando um paralelo com a Matemática.

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro Ricc Fonseca,
      Bom-dia.
      Grato por seu pertinente comentário.
      Fico feliz que tenha gostado do meu conto.
      Será ótimo encontrá-lo mais vezes neste espaço reservado à opinião do leitor.
      Forte abraço.

  2. Ayala Gurgel diz:

    Isto não é um texto, é um movimento de esgrima.

    • Marcos Ferreira diz:

      Mestre Ayala Gurgel,
      Bom-dia.
      Sempre uma honra contar com sua leitura e opinião neste espaço.
      Aqui estou na plateia de administradores de sua escrita.
      Forte abraço.

  3. Odemirton Filho diz:

    O meu dileto Marcos Ferreira sempre nos brinda com seus belos textos. Mais um pra conta. Vou por aqui, aprendendo.
    Abração, amigo!

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro Odemirton Filho, a admiração é mútua.
      Você, que se anuncia como aprendiz, também me ensina o difícil trabalho da simplicidade literária.
      Forte abraço.

  4. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Seus textos perfeitos sempre me transportam para outros lugares. O carinho com os animais é lindo de se ver na sua pessoa. Será que você tem esse mesmo carinho com você? Por que morreu em maio de 2022? Será que está vivendo e convivendo como um morto vivo? Deixo pra você a conclusão! Que tem muita gente por aí perambulando sem matéria, eu até concordo, mas ver-se morto pra perceber que as pessoas sentem a sua falta e choram por você, na minha ótica, acho uma fuga! Que tal começar uma nova vida a partir de amanhã que estará aniversariando? Parabéns, desde já!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida Bernadete,
      Boa-tarde.
      Sempre me sinto recompensado a cada leitura e comentário seu. Quanto ao texto ora comentado por você (Fatalidades), careço fazer uma pequena observação. Embora narrado em primeira pessoa, não se trata de uma crônica, como geralmente tenho publicado neste espaço, mas sim uma página no gênero conto. Isto é, temos aqui uma peça fictícia. Dessa maneira, portanto, não representa, não ao menos ao pé da letra, a figura deste autor. Principalmente no tocante à morte da personagem, cujo nome e o sexo são propositadamente desconhecidos. Ao fim da página, na indicação do gênero literário, consta a observação de que Fatalidades é um conto, ao invés de mais uma crônica geralmente muito vinculada à vida própria deste seu distante amigo e literato. No mais, querida Bernadete, afora uns pequenos indícios, o texto não tem nada a ver comigo. Menos ainda quanto ao elemento da morte do narrador.
      Um grande beijo e uma ótima semana para você.

      • Marcos Ferreira diz:

        PS.: Pensando melhor, dizer que o texto não tem nada a ver comigo foi um exagero. Claro que existem alguns aspectos da vida particular do autor. Pronto. Feita a ressalva.

  5. Professor Tales diz:

    Que texto gostoso de ler meu amigo, do pardal ao outro personagem do texto.

    Fora que são semelhantes, a vida é um sopro, Independente de quem somos e o que somos!

    Ah, Feliz Pascoa a todos!

    • Marcos Ferreira diz:

      Obrigado, prezado professor Tales.
      Você, mais uma vez, acerta na mosca em seu comentário.
      Muito obrigado e uma feliz Páscoa pra você também.
      Abraço.

  6. Rocha Neto diz:

    As vezes sinto inveja santa de quem faz aquilo que gosta de fazer, e faz com maestria.
    Meu presente antecipado para quem aniversaria amanhã, que é o nosso cronista nota 1000 Marcos Ferreira, é sentir a inveja santa oriunda de sua peça em tela com o título de Fatalidades.
    Perfeita nobre amigo!!
    Parabéns.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro Rocha Neto,
      Bom dia.
      Esse tipo de inveja que você expressa é sempre bem-vinda.
      Ótimo saber que está página, a exemplo de outras lhe agradou.
      O Blog Carlos Santos, como alguém já disse, é nossa leitura de domingo, espaço este que se diferencia tanto pela qualidade dos escritores quanto dos leitores. Uma ótima semana para você.
      Forte abraço.

  7. Honório de Medeiros diz:

    Eu, pelo meu lado, fiquei cá me lembrando de Rubem Fonseca e Antônio Maria…

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Mestre Honório de Medeiros,
      Bom-dia.
      É uma honra, além de uma grande responsabilidade, sua alusão, seu comparativo de minha escrita com esses dois monstros sagrados da literatura brasileira: o implacável Rubem Fonseca e o excepcional Antônio Maria. Pelo meu lado, no entanto, estou por aqui também aprendendo com todos os colaboradores deste Canal BCS – Blog Carlos Santos. Porque é sempre possível aprender um pouco mais daquilo que a gente pensa que sabe.
      Forte abraço e até breve.

  8. Raí Lopes diz:

    Sinto muito… Vários aforismos entrelaçados por uma mente criativa. Parabéns!

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