Por Marcos Araújo
Não costumo escrever na primeira pessoa. Acredito que seja por incompetência ou por discrição. Apenas escritores brilhantes como Faulkner, F. Scott Fitzgerald e Goethe souberam genialmente escrever dessa forma.
Pela minha insignificância, sempre achei presunçoso falar de si próprio. Contudo, fujo da discrição para falar um pouco da minha infância, apenas para contextualizar o artigo de hoje.
Nascido em uma família de nove irmãos, numa casinha de pau a pique situada num bairro periférico que é um limbo geográfico entre as cidades de Pau dos Ferros e Encanto/RN, tive uma infância de maternidade comunitária. Logicamente, uma mãe de nove filhos não tinha tempo – nem meios! – para cuidar zelosamente de cada um, dar conta dos trabalhos domésticos e dos afazeres da profissão de costureira.No dia a dia, as vizinhas terminavam em auxiliar nossa mãe nessa tarefa de cuidar de tantos filhos. Uma delas, Dona Lindalva, nos nutria de alimentos tanto para o corpo como para a alma. Dividia ela a pequena produção agrícola de subsistência do esposo com a vizinhança, e ainda promovia encontros na sua casa para orações.
Foi a minha primeira educadora religiosa e exemplo de caridade concreta. Na minha infância, os filhos dos outros eram tratados com zelo. Os pais se sentiam corresponsáveis. Geralmente, quando uma criança ia brincar na casa de outra, a responsabilidade era transferida. Não remanescia preocupação, porque os pais sabiam que seus filhos seriam bem cuidados. Havia um desejo coletivo de aperfeiçoamento moral e de aprendizagem para o bem.
O rigor era imposto também na Escola. Minha professora do primário, dona Bibita, por exemplo, estimulou minha calvície precoce dando alguns “cocorotes” na minha cabeça, colocando a aliança bem na curvatura do dedo anelar para o ponto do impacto, no que causava uma dor indizível.
Fiz esta reflexão recente ao assistir pela televisão, com lágrimas nos olhos, essa tragédia com Miguel, a criança de 05 anos que caiu de um prédio em Recife. Como se viu das filmagens, a criança foi deixada sozinha dentro de um elevador, sob o olhar leniente de uma jovem senhora, apressada e impaciente porque havia deixado a sua manicure esperando.
Por ser a vítima uma criança negra, filha de uma empregada doméstica, e a patroa uma jovem branca, os sociólogos logo identificaram um componente racista. Avocaram Gilberto Freyre e sua obra “Casa Grande e Senzala” para justificar o fato como fruto das relações coloniais do trabalho doméstico. Os historiadores, por seu turno, resgataram a nossa herança escravista. Os movimentos classistas trouxeram o clássico confronto entre capital e trabalho, isto é, entre empregado e patrão, expedindo nota sob a ótica de que “para essa patroa branca, uma criança negra não vale mais que seus cachorros.” A Federação dos Trabalhadores Domésticos classificou a tragédia como “desprezo e coisificação da vida negra”.
Por aqui, estávamos ainda vivendo a ressaca da notícia da morte do ex-segurança George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, asfixiado por um policial branco, gerando protestos e um movimento internacional chamado “black lives matter”. Nem mesmo a onda de revolta modelada pelos americanos acresceu indignação à morte de Miguel. O máximo que teve foi uma passeata de poucos “gatos pingados” pelas ruas de Recife. E as notas dos conhecidos bravateiros das redes sociais. Ficou só nisso…
O menosprezo nacional ao evento tem tudo a ver com três fatores rapidamente identificados: i) no Brasil, o número elevado de trabalhadores domésticos fez com que muitas patroas e patrões se vissem na possibilidade de acontecer infortunística igual; ii) temos raízes preconceituosas e escravagistas, de tal modo que fomos um dos últimos países do mundo a reconhecer a importância do trabalho doméstico; e, iii) a causa pode ser a intolerância, a impaciência e o desequilíbrio emocional que afloraram com maior intensidade com a pandemia.
Embora a nossa Constituição seja de 1988, somente 25 anos depois, isto é, em 2013, corrigindo uma injustiça histórica e com vergonhoso atraso é que o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 72, que equiparou os direitos trabalhistas dos empregados domésticos aos demais trabalhadores. Sem querer trazer qualquer viés político, o Presidente da República atual, na qualidade de Deputado Federal à época, votou contra a PEC.
Muitos defendiam na época da tramitação da PEC que o reconhecimento de direitos trabalhistas integrais aos trabalhadores domésticos iria gerar desemprego e, portanto, lhes seria prejudicial. Coincidentemente, o mesmo argumento dos senhores de escravos no século XIX, que diziam que a Lei Áurea era prejudicial aos negros, pois eles ficariam sem trabalho…
O viajante inglês John Luccock, em Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, que escreveu sobre sua estada por aqui entre 1808 e 1818, revela todo o seu estranhamento ao constatar que os moradores brancos do Rio se recusavam a fazer os mais simplórios esforços em público – como carregar malas ou ferramentas – uma vez que aquele tipo de “trabalho” era destinado aos escravos e, portanto, deveria ser considerado indigno de um homem livre.
A história registra que após o advento da Lei Áurea, muitos ex-escravos permaneceram trabalhando para seus antigos senhores, em especial os que lidavam nos afazeres domésticos, como mucamas, cozinheiras e babás, sem receber um salário, pois permaneciam junto a seus antigos donos em troca de abrigo e comida.
Não se pode divorciar a escravidão da nossa vida presente, nem a discriminação racial nas relações de trabalho contemporâneas quando vemos o elevado percentual de negros e negras como domésticos.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) mostram que o trabalho doméstico no Brasil tem gênero, cor e idade bem definidos: mulheres negras ou pardas, entre 30 e 50 anos. E, para elas são dispensadas “dependências de empregadas” em luxuosos apartamentos; “elevadores de serviço” dos condomínios de alto padrão; a subcategorização profissional sob achaques absurdos como as declarações dadas pelo ministro Paulo Guedes sobre o que seria a absurda “festa” de domésticas viajando para a Disney.
Por fim, essa pandemia tem acentuado as nossas intolerâncias, impaciências e a falta de inteligência emocional. Ao invés de aperfeiçoar a humanidade e elevar o espírito, um dos efeitos inversos sentidos no presente é o declínio da fé, a preservação da individualidade, o aumento do ceticismo, a desesperança e o afloramento das doenças mentais.
Proporcionalmente, há mais gente afetada por doenças mentais do que infectados do coronavírus.
Se vivemos em “sociedade”, devemos recordar que o radical etimológico traz a significação de “sócio na metade”. Somos sócios na metade do outro. Seres interdependentes e correlacionais, criam os filhos uns dos outros. Os filhos dos outros são também meus filhos. Deveria ser assim.
A Miguel, nossa prece, e a certeza de que está em bom lugar, no colo de Deus, acalentado por Nossa Senhora. Como nos conta o evangelista Mateus, de certa feita, estando entre os seus discípulos, disse Jesus: “Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas”. (Mt 19,14).
Marcos Araújo é professor e advogado
Dr. Marcos, o senhor é brilhante, mas, ainda que peça, é impossível não associar as reflexões humanistas do seu texto ao panorama político. Para uma boa parte dos 30% que apoiam o atual governo, que nos leva ao porão do fundo do poço, ter que pagar o FGTS de empregados domésticos foi inaceitável, indesculpável, ultrajante. Nada é tão simbólico como o último ato do ministro fujão da educação ter sido a portaria extinguindo estímulos para que cotas de pós-graduação fossem destinadas a segmentos da população historicamente marginalizados. Vivemos sob o governo de gente perversa, inculta, má e mesquinha.
Caro Victor, estás pedindo o impossível, não esqueçamos, o articulista em seu atual diversionismo retórico não engana ninguém que verdadeiramente o conheça em sua história pessoal e profissional.
Posto que, sempre esteve à serviços das oligarquias potiguares,tendo sido um dos que investiram massivamente no processo golpista,. Sendo sabidamente um eleitor da Cavalgadura Mor, portanto, adepto da política de exclusão social e econômica, pra não dizer da necro-política atualmente em pauta….!!!
Um baraço
FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
OAB/RN. 7318.
Eu te entendo, Fransueldo!
Apenas custo a crer que o homem inteligente se transformaria num stalker irradiador de ódio nas redes sociais. Não muito diferente do que faz aquele conhecido “Gabinete” lá pelo Planalto.
Eles são especialistas em fake News, um modelo que certamente está sendo adotado por muita gente por aqui.
Sou fruto do Estado social, vim da rapalha, da pobreza absoluta, sou defensor do ensino público, gratuito e de qualidade. Conheço o valor da educação e sua transformação social. Um progressista e democrático por convicção.
Não se encaixa em mim o perfil odioso e de direita que você tenta construir.
Sei que tem sido sua “terapia”, atacar as pessoas…
Para isto que produz como injúria, eu vou encarar apenas como uma forma distorcida de “liberdade de expressão”
Saúde e paz!
Deus te abençoe e te proteja!
“Um baraço”.
P.S. Nunca fui advogado da situação. Sempre estive na oposição. Veja a s meus processos e procure se informar melhor.
Dr. Marcos, que texto incrível! E providencial.
Peço permissão para compartilhar com o grupo dos colegas da escola onde trabalho, evidentemente atribuindo os devidos créditos.
Entretanto, devo dizer que concordo plenamente com o comentário do leitor Victor: não dá mesmo para dissociar as coisas. Elas estão intrinsecamente ligadas.
Um abraço cheio de admiração pela pessoa que és. E agora um pouco mais.
Paz e bem!
Escreva em qualquer pessoa, pois escrever você sabe. Texto fotográfico. A modéstia excessiva muitas vezes é um apelo ao elogio. Evite.
Querido François, você é professor. Sou discípulo e aluno seu. Não mereço o elogio, mas agradeço.