Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado (Os Heróis, Thomas Carlyle)[1].
É bem verdade que isso acontece em casos isolados e únicos em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, nas quais certamente se manifesta um tipo superior; tipo que, comparado ao restante da humanidade, aparece como uma espécie de super-homem (O Anticristo, Friedrich Nietzche)[2].
Sempre houve alguma percepção, às vezes discreta, outras, não, de que o percurso da humanidade somente pode ser compreendido se for levada em consideração a noção de que homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, o mais das vezes anônimos, construíram a história.
Não se defende, aqui, que haja uma lei histórica que aponte a existência desses homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, conduzindo o processo histórico, às ocultas ou claramente.
O que se defende é que sempre houve essa percepção, discreta ou ostensiva, por parte significativa de pensadores, de que isso realmente aconteceu.
Sempre houve essa percepção, assim como a de que esses homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, tanto poderiam ser considerados do “Bem”, quanto do “Mal”, seja o que seja um e outro a depender da avaliação dos seus contemporâneos ou pósteros.
Essa percepção, atenta às suas circunstâncias, originou relatos mitológicos, como os do Zoroastrismo, onde Ormuzd é a fonte de todo o Bem, e Ariman, a fonte de todo o Mal.
Há, portanto, uma justificativa metafísica para essa conjectura desenvolvida por muitos pensadores.
Saliente-se o embaralhamento proposital, no romance de Hermann Hess, Demian, entre o que seria o Bem, e o que seria o Mal, quem seriam os heróis, e quem seriam os bandidos, que aponta para o problema da construção das narrativas que solapam verdades ocultas até que o tempo e as circunstância as resgate da escuridão.
No texto, Demian diz para Emil Sinclair, o personagem principal e narrador, referindo-se a Caim:
– Também gostei, mas creio que essa história de Caim pode ser interpretada de maneira diferente. A maioria das coisas que nos ensinam é, sem dúvida, verdadeira, mas também pode ser considerada de um ponto de vista diferente daquele dos professores, e então passa a apresentar quase sempre um significado muito mais amplo. Por exemplo: essa história de Caim, o homem que tinha um sinal na fronte, não poderia nunca nos satisfazer tal como nos é ensinada. Não achas?… Que um homem possa matar seu irmão numa disputa é algo admissível; como também o fato de haver sentido medo em seguida e se humilhado. Mas que sua covardia seja premiada com uma distinção que o ampara e inspira medo a todos os demais… isso já é francamente estranho.
(…)
O que houve desde o princípio, e constituiu como ponto originário da história, foi o sinal. Havia um homem que tinha algo no rosto que atemorizava os demais. Não se atreviam a toca-lo e sentiam medo diante dele e de seus filhos. Mas, naturalmente, o sinal que aquele homem trazia na face não era material, não era, por exemplo, como o de um carimbo dos correios; as coisas não costumavam acontecer, na vida, de maneira tão rudimentar. Tratava-se, possivelmente de algo talvez sinistro, apenas perceptível, digamos um pouco mais de vivacidade e de audácia no olhar. Aquele homem era poderoso e esparzia inquietude. Tinha um “sinal”. As pessoas podiam explicar aquilo como quisessem. E sempre queremos aquilo que nos seja mais cômodo e que nos dê razão. Os filhos de Caim, marcados com o “sinal”, atemorizavam os demais, e aquele sinal passou a ser explicado não como a distinção que realmente era, mas exatamente como o contrário. Passaram a dizer que os homens assim marcados era pessoas suspeitas e ímpias, o que, na verdade, ocorria. Pois os homens corajosos, as pessoas de caráter, sempre inquietaram as demais. Tornava-se, portanto, francamente incômoda a existência de uma raça especial de homens sem medo e capazes de infundir medo aos demais, e então lhes atribuíram um apodo e uma lenda para se vingarem daquela raça e justificarem de certo modo os temores sofridos…[3]
Observemos que a crença na existência do Bem e do Mal atuando concomitantemente, e, em decorrência, de anjos e demônios, heróis e bandidos, constituindo parte do caldo fundamental do qual surge a história poderia, assim, ser considerada arquetípica, fazendo parte do inconsciente coletivo da humanidade, nos moldes propostos na obra de Carl Gustav Jung, um dos maiores psicanalistas de todos os tempos, fundador da Psicologia Analítica.
É de se mencionar o interesse de Carl Jung, tão condenado por Freud, pelo esoterismo, espiritualidade e artes ocultas, que temia pelo comprometimento da credibilidade da Psicanálise.
Carl Jung foi muito importante para a comunidade psicanalítica, chegando a presidir a Associação Internacional de Psicanálise. Fez significativas contribuições para esse ramo do conhecimento, como a elaboração do conceito de “Complexo de Édipo”, chamado por ele de “Complexo de Electra”; da noção de “inconsciente coletivo”; da hipótese dos “arquétipos”; além de outras. Uma teoria famosa de Carl Jung é a dos “tipos psicológicos”, por meio da qual ele propôs os conceitos de introversão e extroversão.
Pois bem, o texto do capítulo anterior é uma alegoria, utilizada para propor a hipótese de que, ao longo do tempo, não faltou quem defendesse ser a história da humanidade constituída pelas ideias e ações daqueles que, de uma forma ou outra, enquanto “heróis” ou “bandidos”, louvados ou condenados, ao resolverem seguir em frente, impulsionaram a história.
No que diz respeito aos “heróis”, respeitados Homero, Heródoto, Tucídides, Hesíodo, Ésquilo, e tantos outros antecessores, Thomas Carlyle foi um dos principais pensadores a defender diretamente o papel fundamental por eles exercidos.
Seu livro Os Heróis, o mais notório de quantos escreveu, publicado em 1841, reuniu seis conferências por ele realizadas desde 1837, e é imediatamente posterior à História da Revolução Francesa, e, nele Carlyle discorreu acerca dos heróis, do culto dos heróis, do heroísmo na história, e expôs sua teoria fundamental, qual seja a de que o conhecimento da história do mundo resulta do estudo da vida de homens como Maomé, Dante, Shakespeare, Lutero, Knox, Samuel Johnson, Jean Jacques Rousseau, Cromwell e Napoleão.
Deve-se ressaltar, entretanto, que uma exegese atualizada do seu texto exige uma abrangência maior quanto a quem impulsiona, com suas ideias e ações ou omissões, a história universal, para englobar tanto aqueles que possam merecer os elogios dos seus contemporâneos e da posteridade, quanto aqueles que mereceriam o opróbrio da humanidade:
Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir; todas as coisas que nós vemos efetuadas no mundo são propriamente o resultado material externo, a realização prática e a incorporação dos pensamentos que habitam nos grandes homens mandados ao mundo: a alma de toda a história universal, pode justamente considerar-se, seria a história destes[4].
É de Carlyle a avançada teoria, para a época, de que os patrões, que ele apontava como um dos tipos de heróis, viriam a pensar, algum dia, que é (seria) “possível e necessário conceder a seus empregados um interesse permanente nas suas empresas”[5].
Não é possível deixar de comparar o trecho anterior, com outro, do romance Demian, de Hermann Hesse:
Para isso levamos o sinal, como Caim o trazia para infundir medo e ódio e arrancar a humanidade de então de um mundo idílico e limitado, conduzindo-a a horizontes mais amplos e perigosos. Todos os homens que influíram na marcha da humanidade, todos eles, sem exceção ou diferença, puderam fazê-lo porque estavam sempre prontos para o destino. Tanto Moisés quanto Buda, Napoleão ou Bismarck. Ninguém pode escolher a onda a que obedecerá nem o polo pelo qual será atraído. Se Bismarck tivesse compreendido os social-democratas e acolhesse suas inspirações, teria sido um político prudente, mas não um homem do destino. O mesmo se passou com Napoleão, com César, com Inácio de Loyola, com todos eles. Essas coisas devem ser consideradas sempre do ponto de vista biológico e evolutivo[6].
Mais que à noção de “heróis”, no sentido proposto por Thomas Carlyle, é melhor estar atento, portanto, aos que ele nomina de “condutores”, “modeladores”, “padrões”, “criadores” de tudo quanto “a massa geral dos homens (ou mulheres) imaginou fazer ou atingir”.
Seriam os “grandes homens” de Carlyle os mesmos “homens do destino” aos quais aludiu Hermann Hesse, pela boca de seu personagem Demian, todos eles, enfim, heróis” ou bandidos”, “santos ou hereges”, “estadistas” ou “terroristas”, a depender, um ou outro qualificativo, de como os seus contemporâneos e pósteros os julgaram e julgam, formando a unidade primordial entre os opostos mencionada pelo Zoroastrismo e Heráclito de Éfeso e constituindo a história da humanidade.
Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN
[1] CARLYLE, Thomas. Os Heróis. São Paulo: Melhoramentos. 1956.
[2] NIETZSCHE, F. O anticristo. São Paulo: Martin Claret. 2015.
[3] Demian, O.a.c.
[4] Os Heróis, O.a.c.
[5] Idem.
[6] Demian, O.a.c.
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