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domingo - 26/03/2023 - 04:34h

Grilos e grilhões

Por Marcos Ferreira

Então, como um pássaro cativo, eis que a gente se vê entre as grades de uma gaiola chamada vida em sociedade. Nessa gaiola, que também podemos chamar de tempo, somos prisioneiros de uma série de rigores e ditames. Temos que obedecer a isso e àquilo. Do contrário, se nos rebelarmos, cortarão o alpiste do final do dia ao começo da manhã. Talvez até por período mais longo. Não duvidem.Ilustração grilos e grilhões

Alheios ao cativeiro, os notáveis cidadãos de bem vivem nas suas bolhas prisionais, crédulos de que têm algum poder sobre terceiros e que mandam em suas próprias existências. Não. Todos estão numa só clausura. É verdade, todavia, que uns dispõem de melhores casas de detenção. Esses possuem tornozeleiras eletrônicas e têm especial liberdade para deixarem suas penitenciárias residenciais e curtirem a noite sem serem incomodados por nenhuma autoridade policial ou judiciária. A esses é imposto apenas o dever de retornarem para suas casas no final da noite.

De tal modo, mesmo que a liberdade lhes pareça uma vitória inconteste, percorremos os limites dos nossos recintos prisionais a supor que usufruímos de plena liberdade. Isto porque, entre outros prazeres e sensações, cremos piamente que dispomos do direito de ir e vir para fazermos o que bem nos der na telha. A isto, com a licença de Saramago, poderíamos chamar de ensaio sobre a cegueira.

Por deleite ou imposição, temos o dever de frequentar determinados ambientes, sobretudo noturnos, escolher uma mesa requintada, ser de pronto atendidos por um garçom educadíssimo, e aí exibirmos nossa sociabilidade ante um copo de uísque com gelo (às vezes em harmonia com um cigarro) ou diante de um prato naturalmente de elevado custo. É o que estou dizendo. As casas de pasto, os restaurantes chiques, graças a Deus, estão repletos dessas pessoas sintonizadas com os padrões sociais. Os casais, as famílias, põem à mostra seu bom gosto e poder aquisitivo.

— Boa-noite. Traz um Old Par, por favor.

Aquele sapato em ótimas condições se torna feio aos olhos do dono e este resolve que seus pés carecem de outro mocassim. A esposa do homem julga que seu guarda-roupa está ultrapassado e vai a uma loja grã-fina, lança mão do seu poderoso cartão de crédito e, de uma só tacada, adquire quatro peças de fino corte e excelente tecido. Os filhos do casal também não ficam de fora do upgrade.

Estamos o tempo inteiro, além da reclusão das gaiolas metafóricas, sujeitos às vontades e humores do capital. Indivíduos de menor alcance monetário se endividam com frequência para se exibirem à altura de outros elementos de seu ciclo de amizades. Põem a corda no pescoço, gastam o que não podem e o que não têm para não fazer feio no aniversário da filha do patrão, ou no casamento do filho do gerente da empresa bancária. Não acreditam? Não estou contando nenhuma história da carochinha. Há pessoas que se enforcam até para comprar uma gravata chique.

Por que não vivermos segundo as nossas posses? Assim não haveria essas gaiolas. Ser natural, autêntico, não é apenas um indício de bom caráter. É ter zelo e respeito consigo próprio. Abandonemos as cadeias da pose e da aparência. No fundo, bem no fundo, todos nós somos seres alados. Uns com ambições maiores, outros com ambições menores. E eis que o céu permanece tão azul e o voo é livre.

Basta, enfim, de tantos grilos e grilhões.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Raniele Alves diz:

    Ótimo texto Marcos, é a realidade atual que vivemos, é a nova ordem mundial, quem não se enquadra nesse contexto é chamado de derrotado porque não atende aos padrões da sociedade em que o mais importante é ter e mostrar aos outros que pode também.

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro Raniele Alves,
      Obrigado pela leitura e opinião. Não quero ser o dono da verdade, porém às vezes me permito dar um palpite em certos pontos caricatos da sociedade. E, evidentemente, isso não diz respeito apenas a Mossoró. É algo do tamanho do planeta Terra e desde nossa pré-história.

  2. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Viver não é fácil! Desde o primeiro choro, a convivência em grupo vai ditando regras; começamos a valorizar o entorno. Lembro que minhas filhas, ao contrário de mim, que só estudou em escola pública, estudaram num Colegio de ricos. Desde cedo tive que mostrar que era um sacrifício pagar para dar-lhes melhores oportunidades na vida; que a escola era pra isso; que o fato de estudarem em escola frequentada por filhos de ricos, não as tornava no mesmo patamar; que não dava pra seguir o que a moda ditava e que esses colegas ostentavam. Situei-as no mundo que podíamos proporcionar, para evitar frustrações futuras. Hoje percebo que foi o correto. Nunca gastei mais do que podia e isso me libertou e liberta, até hoje. Ficar me encolhendo para caber no conceito do outro, é pura hipocrisia. No final todos seremos guardados na mesma caixinha. Papai sempre dizia: caixão não tem gaveta! Ninguém é melhor que ninguém! E Deus deu asas a todos! Cada um que busque a sua felicidade! Bom domingo a todos, na luz e na paz!!!

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezada Bernadete Lino,
      Que belo testemunho esse seu. Sua biografia, como eu já disse, é admirável. Que bom contar com sua leitura e opinião neste espaço. Pois você tem sempre algo relevante e oportuno para dizer. Uma ótima semana para você.

  3. Rocha Neto diz:

    Oi caro Marcos, li por mais de uma vez o seu rico e verídico texto em tela, você retratou muitas cenas já vividas por algumas pessoas, figuras de uma sociedade falida que já não tem como ficar em pé, tentam assim fazê-lo mais o peso das poses/comportamentais irreais deixam o eixo da coluna vertebral imaginaria socialmente, com uma escoliose acentuada que na situação real da vida cotidiana deixa cada falso rico com a coluna estilizada no Corcunda de Notre Dame. Na real mesmo a nossa “classe social” há muito que já não pode tomar nem o Old Par, toma Old Eight como se fosse Royal Salut, enganando a se próprio. E isto a hipocrisia faz com maestria esplêndida, são verdadeiros atores, atuam sem a necessidade de ensaios porque vivem no palco da vida as 24 horas de cada dia.
    Bem, não temos nada com a vida de ninguém e cada um continue a viver como achar que é certo. Viver é o que importa.
    Os problemas criamos, as soluções é que muitas vezes não encontramos.
    Um abraçaço e até a próxima.

    • Marcos Ferreira diz:

      Amigo Rocha Neto,
      Tomara que não sejamos apedrejados por conta dos nossos depoimentos. Mas há coisas intoleráveis que carecem ser ditas. Mesmo que se trate da verdade.

  4. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    O seu texto, meu caro cronista, é um espelho da hipocrisia que assola o que chamamos sociedade. Somos reféns dos ditames que ela, sem nenhum pudor, oferta-nos como se fosse algo útil, necessário, construtivo ao nosso cotidiano. Lembro-me de que (não sei agora), para ser visto no país de Mossoró, fazia-se necessário comprar uma casa de veraneio na praia de Tibau. Vi muita gente fazendo das tripas coração para poder comprar um simples casebre em areias tibauenses (a favelona, segundo o saudoso Canindé Queiroz). Ah, acompanhada de uma picape. Nem vou enveredar pelas superficialidades que o consumo impõe e nós embarcamos sem nem ao menos questionarmos a marca, quanto menos o valor…

  5. Amorim diz:

    Minha admiração a Marcos Ferreira é grande; mas aumentou!
    Um abraçaço

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