• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
quinta-feira - 25/08/2011 - 10:05h

Imagens do meu sertão de uma janela embaciada

No instante em que escrevo esta postagem, Natal é coberta por uma densa chuva. Água fertilizadora.

Da janela do apartamento, em Morro Branco, vejo uma cidade que se entrega ao banho matinal. Mesmo assim, ruge. O ronco de seus carros, o zunir de uma furadeira do outro lado da rua e o abrir e fechar do elevador, que cospe gente para sua rotina urbana, quebram meu encanto inicial.

Na vidraça, embaciada, pincelo minha rubrica com o indicador. Ou caberia o grafismo de um coração, que se volatiza porque não é feito de pedra?

Lá no meu sertão, a chuva espanta bode, empanzina açudes e junta amigos e famílias nas calçadas.

Caindo mansa ou de forma torrencial em nosso cocuruto, das bicas nas casas alpendradas ou não, vira ducha  in natura. É uma cascata celestial. Um privilégio. Se for acompanhada por uma boa cachaça, ô!!

É a mesma expressão da natureza que multiplica a vida e transforma árvores retorcidas e chão árido em cenário de encher os olhos. Sapos coaxam, curimatã cumpre seu ciclo de reprodução; insetos povoam as lâmpadas da posteação e fogem da lamparina ardente.

Um vento frio sibila à ponta do nariz. Muitos de nós emitem sons ininteligíveis. Fazemos vibrar os próprios lábios em bico e urramos para espantar a temperatura estranha. As crianças e os mais velhos cruzam os braços e apertam o próprio corpo, como se fossem esmigalhá-lo.

A pele tostada pelo sol, se enruga.

“Fenômeno da seca”, lugar-comum de cientistas, leigos e imprensa, quer fazer do que é costumeiro, algo inusitado. Não, não.

Na verdade, é essa chuva benfazeja que lá, no meu sertão, é recebida como um acontecimento inusitado. Pra muitos, benção divina.

Entregamo-nos a rituais que agradecem sua chegada ou por vezes clamam que pare um pouquinho, só um pouquinho, como na célebre canção de Luiz Gonzaga.

De minha janela, no segundo andar, não tiro os olhos das imagens que a mente guarda. São telúricas, sim. Dou-me ao luxo de experimentar o feijão na panela de barro; canjica que sai quentinha do fogão à lenha e a água tirada do pote no canto de parede.

O vira-lata, dócil, como a fiel “Baleia” de Graciliano Ramos, faz-me um pouco Fabiano – seu dono. Mas não é de sua morte que quero falar. Chove lá fora… e aqui, faz tanto frio…

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Graça Sabino diz:

    Poesia, pura poesia!
    Insisto pela publicação do livro de crônicas. Embora alguns fatos políticos nos deixem perplexos, outros nos revelem as várias facetas dos atores da vida política desse nosso sertão, encontramos em você uma forma de lidar com isso sem sermos tragados pela indignação: “só rindo”. Sermos presenteados com essas suas crônicas do dia a dia nos deixa embevecidos por nobres sentimentos de ternura… esquecemos quão vil é essa vida política de muitos nossos representantes.

  2. Rosana diz:

    Curti, amei, senti… Sensibilidade a mil…(Sua) E chorei…

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