Por Marcos Ferreira
Nove horas e cinco minutos. Escovo meus dentes (meu sorriso desfalcado) e tomo um punhado de psicotrópicos. Há duas noites, porém, estou sem meu clonazepam de 2mg, o famoso Rivotril. Aqui no cubículo alugado provisoriamente, sem ventilação, quente feito uma cuscuzeira, sou salvo por um ventilador miúdo e ruidoso. Meus olhos estão secos, nenhum vestígio de sono.
A vizinhança é tão ruidosa quanto o ventilador. Bem mais, na verdade, pois há uma casa aqui perto onde residem alguns doidos, um homem e talvez duas mulheres, ambos irmãos. São loucos de verdade, doidos varridos. O homem se põe a gritar não se sabe por que motivo. Uns gritos lancinantes que entram pela madrugada entrecortados por pequenos intervalos.
Tomado banho, nu, o corpo úmido, apago as luzes e busco encontrar uma posição na rede que me ajude a dormir. Tento várias posições e não obtenho sucesso. Não tem jeito. O louco grita. Seu uivo dói nos meus ouvidos, aperta o meu coração. Por que será que tanto grita? Não faço ideia. Os vizinhos mais próximos devem ter se acostumado a isso e dormem serenamente, pois não se trata de algo apenas de hoje ou de ontem. Não, não. É coisa antiga. As mulheres também gritam, porfiam com o louco, e este responde com termos chulos contra as doidas suas irmãs.
Minha cabeça gira, viaja no tempo, penso em mil coisas. Retalhos do passado vêm à minha lembrança. Eventos remotos e outros recentes assomam, ocupam a minha mente já perturbada pelos gritos do homem louco. Súbito, então, o sujeito se cala, e eu concluo que ele enfim dormiu. Pois é, até o alienado conseguiu dormir, enquanto eu permaneço refém da insônia.
Por mais que feche os olhos, alternando posições na rede, lutando mentalmente contra mim mesmo, de nada adianta o meu esforço para cair nos braços de Morfeu. De repente me angustio com a ideia de morrer aqui sozinho, vítima de um infarto. Não sei quanto tempo depois me encontrariam hirto e despido, o sexo flácido quase oculto em meio à mata de pentelhos um tanto grisalhos.
Num determinado momento, contudo, sinto um leve relaxamento. Então me empolgo com a possibilidade de conseguir pegar no sono. Tolice. Pois o louco volta a gritar dentro da madrugada e meus olhos seguem secos.
Que horas serão? O celular está ao pé da rede, sobre meus chinelos, mas não tenho coragem de consultá-lo. O tempo decorrido desde o momento em que deitei é longo. Tenho certeza de que já estamos a horas mortas. Não posso consultar o celular. A confirmação da alta madrugada só me imporia ou ampliaria a minha obrigação de conseguir dormir, coisa esta que me parece impossível a cada minuto que passa. O louco sustenta uma nova e pungente sessão de gritos. As irmãs igualmente loucas ralham com ele e o doido reage com termos de baixo calão. Custo a crer, apesar dos pesares, que os bem vizinhos dessa residência de malucos tenham se habituado a isso e consigam dormir placidamente. Porque esta não é a primeira vez que ouço tal gritaria.
Enquanto isso me remexo, os olhos secos, atordoado, a roda-viva dos meus pensamentos fragmentados está cada vez mais veloz na minha cabeça. Toda espécie de bobagens me ocorre nestas horas mortas, noite insone.
Um vigilante noturno passa buzinando sobre uma motocicleta. Haverá quem talvez duvide, mas recentemente eu soube que um desses homens da segurança de bairro, que circulam desarmados exceto por uma buzina, teve a sua moto e a sua carteira tomadas de assalto aqui no Conjunto Walfredo Gurgel. Cruel ironia contra um trabalhador que se propõe a defender o patrimônio coletivo, no entanto não possui condições de defender a si próprio em meio à solidão destas ruas esburacadas.
Daqui a mais uns dias, a continuar assim, roubarão até mesmo carros da própria polícia.
Levanto, acendo a luz, vou à geladeira beber um pouco de água. Imagino se não seria o caso de tomar mais uma quetiapina de 200mg. Não é propriamente o efeito mais indicado, todavia a quetiapina contribui um pouco para o sono. Não. Abandono essa ideia. Quem sabe um relaxante muscular. Olho os remédios dispostos sobre o balcão e não vejo nenhum relaxante muscular.
O calor, arrefecido pelo banho frio e o copo d’água, já não incomoda. Volto para a rede melancolicamente nu, e outra vez me vem o receio de morrer vítima de um infarto e me encontrarem aqui desnudo, isto após chamarem por mim e precisarem arrombar a porta. É isto, a insônia nos faz pensar em mil e uma coisas, inclusive na lástima de morrer nu e sozinho neste cubículo.
O louco se calou. Enfim suspendeu os gritos. Então, menos por sono do que por cansaço, eis que também findei adormecendo. Mas ouvi que os passarinhos já cantavam nas copas das árvores. O importante, contudo, é que finalmente consegui dormir. Até que alguém, por engano, bateu na porta chamando por um tal de Roberto. Despertei atordoado. Noite de insônia. Preciso comprar meu Rivotril.
Marcos Ferreira é escritor
Excelente crônica, como sempre. Parabéns Marcos.
Gostaria de fazer uma pequena observação: seria possível aumentarem o tamanho da fonte? Confesso que sinto dificuldade em ler.
Mais uma história comum de um homem e seu tempo que luta contra o fantasma da insônia.
Fantástica crônica compondo um realismo urbano de altíssimo valor social.
Parabéns ao escritor que me faz sentir orgulho de ser mossoroense apesar de residir fora por algumas décadas. Vida longa ao nosso magnífico CIDADÃO DAS LETRAS!
Como diz o poeta Cazuza na canção: ” Todo dia a insônia me convence que o céu, faz tudo ficar infinito”
Abraços poeta e escritor Marcos Ferreira. Que você possa dormir, pro dia nascer feliz!
Boa tarde, Marcos!
Excelente crônica! Até mesmo pra falar da insônia e das coisas cotidianas, a riqueza de detalhes e a escrita são sempre um deleite para seus leitores. Parabéns, amigo poeta! Abraços das bandas de cá…
Uma linda e forte crônica como tudo que escreve , merece atenção. Parabéns e, que venha outras.!!!!!!
Caro poeta! Você é ótimo! Dorme despido como veio ao mundo? Kkkkkkkkkkkkkkk
Isso é uma analogia a como você se despe para o seu leitor, sem receios, vergonhas ou temores da opinião alheia! Essa característica te faz sincero, verdadeiro e deliciosamente admirável!
Admiro-te cada vez mais!
Beijos!
É, meu caro escritor, esse mal aflige uma parcela cada vez maior da população, independentemente de ter, ao lado da casa, pessoas que passam a noite dando uma de barítono ou de soprano. E vou lhe dizer uma coisa: o Rivotril come solto. Como sempre, uma ótima crônica. Parabéns!