Por Cid Augusto
– Nome?
– Augusto Floriano.
– Profissão?
– Dizem-me poeta.
– Tem filhos em idade escolar?
– Sim.
– Renda mensal?
– Inconstante e insuficiente. Sou um “liso estável”, como diria o jornalista Carlos Santos.
– O senhor tem o direito de permanecer em silêncio, sem que o silêncio seja usado em seu desfavor, mas o interrogatório é também momento de especial oportunidade para o acusado se defender, além de a confissão representar diminuição da pena que eventualmente vier a ser imposta. Compreende isso?
– Sim, compreendo. E desejo falar. Ou confessar, se minhas palavras assim parecerem.
– O senhor ouviu atentamente a acusação?
– Com certeza! Dicção perfeita, a de Vossa Excelência, com pausas dramáticas nas partes mais “incriminadoras”.
– Os fatos narrados são verdadeiros?
– Absolutamente!
– Não entendi. A resposta é ambígua.
– Cristalinos como um bordeaux Château d’Yquem, safra de 1811.
– Por favor, respeito. Não venha com ironia barata.
– Bom, o vinho é caríssimo, mas, de fato, prefiro cachaça.
– Essa confissão é espontânea?
– As minhas palavras são livres, espontâneas e gratuitas, sem os favores dos 30 dinheiros com os quais se vêm convencendo delatores das mais elevadas classes, patentes e estrelas. Até porque um poeta, por menos talento e inspiração que tenha, jamais seria dedo-duro. Aliás, senhor magistrado, o que tenho a dizer diz tudo de mim, nada de ninguém.
– Então, indo direto ao assunto…
– Sim, é verdade, eu faço amor por fazer, e não me importo, de jeito maneira alguma, se essa impostura ofende a honra da música sertaneja ou se os românticos vão me excluir de suas redes sociais. Quanto aos puritanos, prefiro exercitar o direito constitucional ao silêncio.
– O réu está se esquivando… ou fala tudo ou se cala…
– Seria preferível não falar dessa gente. Entretanto, já que insiste em me negar o silêncio seletivo, afirmo que os puritanos são criaturas desprezíveis, a escória da humanidade. Eles fazem guerra por fazer. Quem faz guerra não faz amor.
– Como assim?
– O puritano é, na essência, um depravado enrustido, que deturpa moralidades para disfarçar perversões e infernizar a vida alheia. Em vez de amor – puro, espontâneo, leve e solto –, ele faz guerra.
– Como assim, guerra?
– Guerra para atormentar ex-mulher, ex-marido, vizinho, desconhecido; guerra para atanazar protestante, budista, católico, umbandista; guerra para irritar esquerda, direita, centro; guerra contra a felicidade alheia; guerra contra tudo o que é democrático, a exemplo do amor. Guerra contra o que lhe parece contra!
– Fazer amor por fazer é subversivo aos olhos de Deus, da Pátria e da Família (escrivão, favor consignar Deus, Pátria e Família com letras iniciais maiúsculas).
– Não perante Florbela Espanca, que defende “amar só por amar” em vez de odiar só por odiar. A propósito, como diria José Régio, “Eu amo o Longe e a Miragem,/ Amo os abismos, as torrentes, os desertos…”. Nada contra quem ama “o que é fácil”, embora o amor belo, recatado e do lar não seja o espírito de Coríntios 13: 1-13.
– Coríntios 13: 1-13? O senhor zomba das Sagradas Escrituras (escrivão, Sagradas Escrituras com iniciais maiúsculas, por favor).
– De nada adianta falar a língua dos homens e até a língua dos anjos, conhecer mistérios, dominar ciências, distribuir falsa caridade, sem a capacidade de amar perdidamente o próximo e o distante, pois o amor é um dom que, em sua plenitude, supera a fé e a esperança.
– Melhor o senhor se aconselhar com a sua advogada antes de prosseguir nesse raciocínio profano e subversivo…
– Não vou precisar. O senhor mesmo exigiu-me a fala franca como condição de prosseguir com o interrogatório.
– Precisar, verbo transitivo direto ou indireto?
– Interprete como quiser, o juiz aqui é o senhor, embora eu deva dizer, “com a máxima vênia”, da intransitividade que…
– Respeito à Justiça! Chega de blasfêmias e ironias!
– Desculpa! Quis apenas ressair que a justiça deve se preocupar também – e ainda mais – com os que precisam de Justiça, muito acima, parodiando famoso jurisconsulto de minha terra, das abstrações da lei adormecida “na frialdade inorgânica da celulose, o papel”. Essa lei, excelência, jamais será exata porquanto interpretada por homens, que, por último, desde a Suprema Corte, passam a decidir maquinalmente pelo livre convencimento da inteligência artificial. Deram-lhe até nome: Maria!
– Eu decido com base no livre convencimento motivado, conforme a legislação me faculta, e escrevo minhas próprias decisões.
– Tudo bem, “Doutor”! Meu convencimento também é motivado. E meu motivo é a poesia, o verso que atravessa a alma e liberta a carne viva e pulsante de quem ama porque ama. Ou isso seria um livre convencimento imotivado, já que não preciso de motivo algum para fazer amor com quem me deseja e a quem desejo?
– Legalmente…
– Do ponto de vista legal, só posso dizer que sou camonianamente indefeso contra o tal “fogo que arde sem se ver”, contra a tal “dor que desatina sem doer”, contra o tal “querer estar preso por vontade”; embora drummondianamente consciente das “sem-razões do amor” e de seu parentesco de quarto grau com a morte, que o vence e por ele é vencida a todo o tempo.
– A medida do amor desmedido pode ser a dor constante da perda…
– Provavelmente. Contudo, sopesando os prós e os contras, convenço-me de que é melhor sofrer por amor do que se regozijar no ódio. Em outros termos, melhor ser passarinheiro e gostar de passarinhar, na voz de Roberta Sá, com a licença de Dudu Nobre e Roque Ferreira, do que cair nas armadilhas das desafeições.
– Que vergonha, seu Augusto! O senhor, um homem velho…
– Interrompo, respeitosamente, antes de que a Excelência cometa a gafe de antecipar o veredicto, não obstante vossa inquestionável proximidade com certa República de Curitiba. E, se me permite, acrescento, mais uma vez fundamentado em Drummond, que “amar se aprende amando” e que o “amor é grande e cabe/ no breve espaço de beijar”. De cada amor que se encanta o poeta, nasce uma rosa, um verso e, quem sabe, um quadro de Laércio Eugênio ou de Túlio Ratto.
– E os grandes e verdadeiros amores onde ficam?
– Grandes e verdadeiros? E todos não são assim? Olha, senhor juiz, já percorri tantas vezes o inferno e o purgatório para alcançar Beatriz e continuo descendo ao mundo dos mortos para resgatar Eurídice sempre que ela me chama.
– E esse esforço vale a pena?
– Sempre vale a pena. Sempre! Pois a recompensa é o paraíso perdido que se encontra e volta a se perder em si. Nesse exercício, aprendi que todos os amores são grandes, excelência, mesmo os que se consumam “no breve espaço de beijar” ou, transgredindo o bom mineiro, no breve espaço de um orgasmo.
– O senhor tem algo a acrescentar?
– Sim! Sem anistia! Sem anistia para os que atentaram contra o estado democrático de amar, com a arma – anagrama ilícito de amar – mais abjeta dos fascistas: o ódio à soberania dos que amam a liberdade.
– Ministério Público, perguntas?
– Satisfeito, excelência.
– Advogada Clarisse Tavares, perguntas?
– Sem perguntas, excelência. A defesa está posta.
– Partes intimadas em audiência para alegações finais sucessivas, por memoriais. O réu continuará preso cautelarmente, com respaldo na proteção da ordem pública, aguardando pela sentença. Audiência encerrada.
Cid Augusto é jornalista, advogado, professor, poeta e escritor
Faça um Comentário