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domingo - 13/02/2022 - 07:26h

João, o missivista

Por Marcelo Alves

O rei João da Inglaterra (1166-1216) restou conhecido na história pelo apelido – depreciativo, por sinal – de João Sem-Terra. Paciência. Dizem haver merecido.

João era natural da bela e erudita Oxford e o filho mais novo do rei Henrique II (1133-1189) e da rainha Leonor da Aquitânia (1122-1204). Assim, de logo, tinha poucas expectativas de herdar grandes possessões de terra. Entretanto, tornou-se o filho favorito do pai por ficar ao lado deste nas rebeliões encetadas pelos irmãos mais velhos.Carta Magna - manuscrito na Inglaterra

Destes, Guilherme, Henrique e Godofredo morreram jovens. Foi seu irmão Ricardo (1157-1199), o Ricardo Coração de Leão, que virou rei em 1189. João conspirou sem sucesso contra o rei do “coração de fera” quando este estava na Terceira Cruzada.

Com a morte do rei Ricardo, em 1199, João finalmente assume o trono. Mas João perdeu muitas terras, localizadas sobretudo na Normandia francesa e arredores, para o rei Filipe II de França (1165-1223), dito (elogiosamente) Filipe Augusto. Isso, claro, fortaleceu em demasia a dinastia dos Capetos de França e, por sua vez, enfraqueceu bastante o Império Angevino ou Plantageneta inglês. João mereceu o infame codinome.

De toda sorte, a fama de João Sem-Terra, uma moderada boa fama in casu, reside também em sua participação em um momento estelar do direito e da ciência política como um todo: a assinatura da Magna Carta (também chamada de Magna Carta Libertatum ou Grande Carta das Liberdades), em 1215.

Originalmente escrita em latim e conhecida, no Brasil e mesmo no mundo de língua inglesa, pelo seu nome latino, a Magna Carta é sem dúvida um dos textos/documentos mais importantes da história do direito e, por que não dizer, da Humanidade. Segundo conferi certa vez na British Library, não há evidências de que apenas um único original da Magna Carta tenha sido produzido e oficialmente firmado em 1215 e, dos muitos “originais” da Grande Carta produzidos à época (sendo guardados em lugares supostamente seguros, como catedrais, abadias etc.), apenas quatro sobreviveram, achando-se dois desses no museu da maravilhosa Biblioteca Britânica.

Os outros dois exemplares estão nas cidades inglesas de Salibury e Lincoln.

A Magna Carta, é verdade, teve como inspiração e modelo a anterior Charter of Liberties, de 1100, na qual o rei Henrique I (1068-1135) voluntariamente reconheceu que seus poderes estavam limitados pela lei. Mas, quando falamos da Magna Carta, nos referimos, precisamente, ao documento de 1215, que foi várias vezes emendado nos anos subsequentes (1216, 1217, 1225 e por aí vai), por diferentes monarcas, sendo a versão de 1297, eventualmente, a que restou assentada nos livros pertinentes à legislação da Inglaterra e do País de Gales.

Na época, a Magna Carta foi uma solução prática para um contexto em que o rei inglês estava em conflito com a Igreja e com boa parte dos barões do Reino e enfraquecido pelas desastrosas campanhas militares no que hoje é a França. Por pressão dos barões, a Carta exigiu do rei João Sem-Terra (que teve sempre sua legitimidade ao trono inglês contestada pela forma como a ele ascendeu após a morte do rei Ricardo Coração de Leão) e, por consequência, dos monarcas subsequentes que respeitassem certos direitos e procedimentos legais, deixando claro que a vontade do monarca não era absoluta, estando sujeita ao direito.

Diz-se, por exemplo, estar na Magna Carta a origem do instituto do habeas corpus. Ela, pelo menos implicitamente, garante a expedição dessa ordem para o caso de prisão ilegal. Entretanto, não resta dúvida de que a Grande Carta foi um dos primeiros passos dados no caminho que levou ao surgimento do constitucionalismo moderno, sobretudo nos países de língua inglesa, como a Inglaterra e os Estados Unidos, bastando lembrar sua repercussão no Bill of Rights americano e na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Alguns de seus artigos e parte da introdução, inclusive, ainda estão tecnicamente em vigor no contemporâneo direito inglês.

O tal João, embora “sem-terra”, foi um grande missivista.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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Categoria(s): Crônica

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