Por Marcelo Alves
Não apenas de homens “práticos” é feito o direito. Há também os juristas, numa acepção peculiar do termo, para designar os pesquisadores, doutrinadores, professores e estudantes dessa ciência. E eles têm também o seu devido espaço na literatura universal.
O enorme Honoré de Balzac (1799-1850), o “Napoleão das letras”, por exemplo, se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade e, por que não, de seus juristas. “A comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas. Aqueles imaginados pelo autor, claro. Mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da “Comédia”, como teria certificado Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996). E, mais curiosamente, juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances.
Assim também o fez o gigante Miguel de Cervantes (1547-1616), o pai do “Dom Quixote de la Mancha” (1605). Grandes jurisconsultos são citados nas obras de Cervantes, anota Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, em “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006). Por exemplo, “o nome de Justiniano é referido pela boca da personagem Redondo na comédia Pedro de Urdemalas, ainda que de forma grosseira. O mesmo se dá com os importantes juristas medievais Bartolo ou Baldo”.
Em “La elección de los Alcaldes de Daganzo”, uma farsa, “num coro de músicos e ciganos, faz-se referência a Bartolo”. Há também “uma menção aos juristas Bartolo e Baldo em La tía fingida, atribuída por um tempo a Cervantes”.
De verdade ou fictícios, estudiosos e estudantes do direito também têm lugar, para além da literatura, no cinema. E aqui, no momento em que se discute o papel da mulher no sistema judicial brasileiro, com a controversa questão da inclusão do gênero como critério de promoções por antiguidade e merecimento na magistratura e no Ministério Público, faço referência ao popular filme “Legalmente loira” (“Legally Blonde”, 2001), adaptado do romance homônimo de Amanda Brown e estrelado pela engraçadíssima Reese Witherspoon.
Basicamente, quanto ao seu enredo, segundo o site em português do IMDb (Internet Movie Database), a patricinha Elle Woods, “uma rainha da irmandade da moda, é abandonada pelo namorado. Ela decide segui-lo para a faculdade de direito [no filme, a Harvard Law School]. Enquanto está lá, ela percebe que há mais nela do que apenas aparência”. “Legally Blonde” é um filme divertidíssimo. Foi sucesso de crítica e público. Ganhou uma sequência (“Legally Blonde 2: Red, White & Blonde”). Virou um musical, que, aliás, assisti em Londres. Adorei. Mas ele é também, sob a aparência de “bobinho”, bem mais do que isso.
“Legally Blonde”, à sua maneira, representa um final rompimento com a tradição secular, no cinema, de os advogados (e outros operadores do direito) serem sempre personagens masculinos. Levando em consideração a completa ausência de mulheres advogadas em “I Am The Law” (1938), passando pelas personagens femininas de “Suspect” (1987), “The Accused” (1988), “Class Action” (1991) e “The Client” (1994), a onipresença feminina da personagem Elle Woods (interpretada por Reese Witherspoon) é um marco notável.
Bem construído, por detrás da máscara de bobinho, “Legally Blonde”, com a vitória profissional da protagonista e a demonstração da hipocrisia e preconceito masculinos (e de Harvard), tem um forte apelo em favor da mulher. Representa, em certa medida, o espaço que o “sexo frágil” vem ganhando no mundo do direito. “Mesmo de salto alto e vaidosas, as mulheres terão sempre mais espaço daqui para frente”, foi o que me disse certa feita uma amiga querida.
Têm alguma ou bastante razão, o filme e a minha amiga.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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