domingo - 08/03/2015 - 08:54h

La Carrilho

Por Vicente Serejo

Ainda andava por perto o carnaval. E Márcia estava ali, no alpendre da nossa casa, diante do mar da velha Redinha, quando Mumbaca chegou. Só sei chamá-lo assim porque não sei seu nome de verdade. É Mumbaca, e basta. Chegara do Rio e estava de passagem para sua Toca do Miga, em Extremoz, onde era jardineira e, de tarde, pastorava o voo majestoso de dois urubus que chamava de Cristóvão e Colombo.

Tomou um uísque, um só, talvez para acender o Hollywood antes de seguir.

Mumbaca é personagem vivo da velha Redinha, risonho e debochado, mas naquela tarde não estava para fazer graças. Vivia as cinzas do carnaval e a tristeza lhe fazia incorporar voz de Ângela Maria naqueles agudos tristíssimos das canções de amor. Com seus olhos miúdos, acabou cativando Márcia no encontro mágico daquela tarde cinzenta.

Ela saiu, foi até o carro, e veio com os adereços que usara no carnaval. Estavam perfeitos e ela trazia para guardar com pena de se desfazer do luxo.

Foi como se voltasse com uma varinha mágica. Um riso acendeu aquele rosto envelhecido de Mumbaca, como se não acreditasse no presente.

Rejane lembrou, emocionada: Márcia arrumou sobre seus ombros uma echarpe de plumas rosas, e ele, para mostrar toda a gratidão do mundo, tirou lá de dentro um velho sucesso de Miltinho: ‘Lembro um olhar, lembro um lugar, tem vulto amado. / Lembro o sorriso e o paraíso que tive ao teu lado… e lá na frente – ‘Lembro, afinal, um triste adeus’.

Parecia uma cena de filme surrealista: Mumbaca baixou a cabeça em sinal de agradecimento e saiu, luxuoso, sobre a brancura da areia da praia com a echarpe esvoaçante pintando de tons vivos e avermelhados a solidão monótona da paisagem. Era muito de Márcia curtir essas loucuras.

Uma vez, vindo de Paris praticamente direto para Natal, resolveu festejar seu aniversário na Toca. Nesse dia, resolveu ir além do comum: serviu de entrada rodelas de grude com legítimo caviar de esturjão.

No seu apartamento, na Rua General San Martin, Leblon, conhecemos vários escritores. Silviano Santiago, Antônio Torres, Raquel de Queiroz e José Louzeiro, para citar alguns. Um dia nos apresentou, no Rio, ao professor Didier Lamaison, o grande tradutor da antologia de poemas de Carlos Drumond de Andrade, edição Gallimard.

Falava português e, por isso, Rejane convidou para uma palestra na Capitania das Artes. Ele veio. Alguns anos depois nos ofereceu um café em Paris.

Devo a Márcia e a Ney Leandro a organização do meu terceiro livro de crônicas – Canção da Noite Lilás, Lidador, Rio, 2000. Ney criou a capa, revisou a seleção dos textos feita por Márcia e deu a idéia de convidar Mem de Sá para fazer as ilustrações. Mas foi de Márcia a ousadia de pedir o prefácio a Silviano Santiago. Ele fez quase uma introdução, consagrando um cronista de província e até hoje somos amigos.

Aqui, na coluna, ela era sempre La Carrilho, uma diva na alegria de viver…

Vicente Serejo é jornalista e escritor

* Texto originalmente publicado pelo Jornal de Hoje.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. naide maria rosado de souza diz:

    Conheci-a depois de sua partida. Lamento. Por notícias soube que era divina na alegria, no saber viver. Por notícias soube que brilhava como estrelas e não pude admirar-lhe o brilho. No entanto, faço-o agora, pois “estrelas mudam de lugar.”

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