Por Marcos Ferreira
Somos inúmeros e estamos em toda parte o tempo todo, embora em quantidades às vezes mínimas, imperceptíveis. Diversidade é uma das nossas principais características. Há quem se engane, porém, achando que somos um único fenômeno atmosférico, que o vento que sopra no Alasca ou na Sibéria é o mesmo que abrange o deserto do Saara.
Não. Mas é como se possuíssemos o dom da ubiquidade, da onipresença, e nos tornamos tão essenciais para a vida quanto a água e o Sol, apesar de tanta destruição que já causamos e continuaremos a causar. Fomos criados para corrermos livres por este mundo sem termos que prestar contas com nada nem ninguém.
Em certas condições e lugares, a depender também da cultura de alguns povos, chamam-nos de nomes exóticos e estrambóticos. Normalmente somos conhecidos por palavras como ciclone, tufão, tornado, furacão, etc. e tal. Há ensejos em que atingimos velocidades da ordem de quase quinhentos quilômetros horários, no caso dos tornados. Aí pouca coisa continua de pé após nossa passagem. Os supersticiosos, ao surgirmos com pequena intensidade, nos chamam até de Saci Pererê.
Isto, contudo, são histórias da carochinha, folclore brasileiro. Na realidade, acreditem, não temos nada de fantástico ou prosaico.
Dessa maneira, gostem ou não, foi como o Criador nos fez. Eu, por exemplo, já varri diversas áreas, continentes, remotas regiões deste fabuloso planeta Terra, estive em quase todas as vastidões e recantos do globo, enveredei pela garganta dos maiores e piores vulcões em atividade e percorri desde o polo ártico ao polo antártico. Atualmente, depois de centenas de milênios de serviços prestados, tendo presenciado o surgimento do Homem e seu processo de autodestruição, que segue em ritmo avançado, limitei-me aos domínios desta cidadezinha para descansar um pouco e observar os seus mortais com maior atenção. Por que exatamente não sei lhes dizer.
Pretendo ficar por aqui como regente ventígeno destas cercanias até que o Todo-poderoso resolva me designar para outro cafundório. Esta província, pelo que noto, pode ser do meu agrado. Se algo me enfurecer, entretanto, posso me transformar num furacão de elevada magnitude e devastar esta vila e esses matutos metidos a cosmopolitas. Isto, na verdade, é bem pouco provável. Muitíssimo improvável, aliás. Porque essa gente é tão previsível e entediante que chega a me dar sono.
Então, diferentemente de outras épocas e de como atuei noutros pontos, aqui circulo apenas como uma tépida e ordeira brisa na maior parte do tempo. Durante as madrugadas, segundo os referidos matutos, eu sou o que eles chamam poeticamente de cruviana, um ventinho frio e bem-vindo que embala o sono dos munícipes. Esta, todavia, é a minha forma agradável, boazinha. O que eles não sabem, nem vocês conhecem, é a minha real natureza — o fogo. Sim. Se não sabiam, que fiquem logo sabendo. O fogo só existe a partir de mim, do oxigênio e da combustão de materiais inflamáveis, isto que é propagado e pode ser resumido tão só como o ar em movimento.
Trocando em miúdos, se ainda não me fiz entender, sou o vento. Enquanto fogo, convertido em chamas, fui devastador, implacável na maioria das ocasiões em que avancei — desde os tempos imemoriais — sobre cidadelas, pequenos e grandes lares, imponentes edifícios e palácios suntuosos, templos, florestas, vilarejos e plataformas de petróleo, ceifando vidas humanas, de animais e vegetais.
Há poucos meses, investido do fogo, como eu disse, castiguei duramente a Amazônia brasileira. Pois, graças à negligência de um presidente da República insensível, e de um ministro do meio ambiente visto como notório traficante de madeira, encontrei as condições ideais para promover a morte e destruição de importante parcela da fauna e da flora. Agora me estabeleci aqui. Outro do meu tipo e equivalência assumiu a tarefa de multiplicar os vários focos de incêndio na floresta.
Por dever do ofício, digo sem orgulho algum que fui coadjuvante daquela desgraça toda, pois o Homem, este sim, é sempre o protagonista. Então, para ser franco, estou cansado desta vida trágica, fatídica, violenta. Já solicitei e aguardo uma audiência com o Criador para dar entrada na minha aposentadoria.
Acho que escolherei passar o restante da minha eternidade nesta insólita Mossoró, terrinha calorenta, de pessoas boas e também de um monte de sem-vergonhas, como ocorre em toda parte.
Pretendo trilhar estas ruas, becos e avenidas informalmente, aqui e ali jogando uma poeirinha do solo árido sobre todo mundo. Mas nada pessoal, claro. Hoje, portanto, a minha ambição é esta: pendurar as chuteiras e ser, durante a madrugada, não mais do que uma simples cruviana. Se Deus quiser.
Marcos Ferreira é escritor
Você é muito mais que uma simples cruviana, feliz dia dos pais. Te amo.❤️
Obrigado, Amorzinho. Painho também te ama muito.
Ah, cruvianinho fresco da madrugada… Ponha um fremito em meus ouvidos, assanha os meus cabelos, me arrepia a pele. Bem vindo.
Muito bem, amiga.
Me aguarde que estou chegando.
Nas asas dessa cruviana.
Forte abraço.
Muito talentoso esse escritor. A sua peculiar inteligência ele mostra que são os homens (inescrupulosos) que provocam o desequilíbrio no meio ambiente. Com isso, outros elementos da natureza se vingam na forma de “fenômenos naturais”. O bom de tudo isso é que não chega a atingir a pacata e ordeira cidade de Mossoró.
Obrigado, Raimundo Gilmar.
Que bom minha crônica lhe agradou.
Forte abraço.
Caro Marcos, nesses tempos tristes e tormentosos tempos de destruição ambiental deliberada e seus ciclones/fogos, , furacões/fogos e tufões/fogos, tornados realidades dizimadoras da vida presente e no porvir a partir da canalha e indigente ingerência de um suposto mito.
Que tal lutarmos dia após dia, mais ainda pra que nos transformemos em milhões de cruvianas votantes, exatamente pra liquidarmos com essas patifarias de um suposto mito no dia 02 de OUTUBRO PRÓXIMO…?!?
Um baraço
FRANSUELDO V. DE ARAUJO
OAB/RN. 7318
Prezado Fransueldo,
Boa tarde.
Obrigado por suas impressões sempre lúcidas e motivadoras.
Forte abraço.
As crônicas de Marcos Ferreira são, como sempre, maravilhosas. Um escritor nota dez.
Parabéns, amigo. Continue a nos presentear com seus textos.
Abração!
Caro amigo Odemirton,
Boa tarde.
Fico imensamente feliz com seu comentário.
Que bom que gostou desta cruviana.
Espero em breve tomarmos outro café daqueles.
Abração!
Sua crônica de hoje, é um vendaval de verdades verdadeiras! Que os bons ventos guiem sua criação… Feliz dia dos pais! Abraços
Caro poeta Airton Cilon,
Muito obrigado.
Tudo de bom para você, muita arte, saúde e paz.
Abraço!
Gostei muito! Num país onde o que vale é o que circula em rede social em formato “fake news” e o povo engole toda besteirada como verdade, tocar num ponto onde até os cegos enxergam que vivemos um desgoverno, chega a hora de separarmos o joio do trigo! Adorei a circulação desse vento e onde ele tocou! Precisamos sair da inércia e aprofundarmos o momento que vivemos! O tempo da ilusão já passou e a realidade está aí nos cobrando posicionamento! Parabéns por escrever tão bem! E feliz Dia dos Pais, tomo por base um comentário já postado, vez que, conheço os seus escritos através do meu amigo João Bezerra de Castro, embora nada saiba de sua vida! Obrigada pelo presente! Aprecio pessoas inteligentes!
Querida Bernadete.
Boa tarde.
É sempre uma honra contar com sua presença e opinião neste espaço.
Apesar de algumas ausências, por motivo de força maior, tentarei me manter mais assíduo neste blog. Também estou me organizando mentalmente para retomar o folhetim no próximo domingo. O nosso amigo João Bezerra de Castro é um dos principais incentivadores desse retorno.
Grande abraço e tudo de bom para você.
Marcos Ferreira.
Gosto do vento quando ele balança os cachos da acácia e veste de ouro essas ruas que nós pisamos. Parado em algum ponto de sertão potiguar às vezes observo o vento despir o ipê e o chão se transformar em golden street. Uma vez apaixonei-me por um pé de jambo que estendeu seu tapete vermelho, quando perambulei por essas terras do cafundó. Gosto do vento quando ele transforma folhas secas em borboletas ou quando ele infla balões para nosso deleite. Gosto do vento quando ele atrevido levanta saias e aquece meu fogo, mas não gosto quando ele uiva nos meus ouvidos nas noite insones.
Parabéns amigo, por essa crônica deliciosa.
Prezado Marcos Campos,
Boa tarde.
Que bacana este seu comentário. Pois você, com poeticidade e síntese, escreveu uma crônica acerca da minha crônica. Quase na dimensão de um haicai. Belo exemplo de concisão. Coisa mesmo de craque.
Forte abraço e uma ótima semana para você.
Marcos Ferreira.
Se vais ficar no país de Mossoró cito Obery Rodrigues para dizer “que as abençoadas chuvas de Mossoró” são únicas, pois ao invés de esfriarem os ânimos aquecem as vontades. Lá por cima, acredito, não encontrarás coisas para se entristeceres. Portanto, entre pedir aposentadoria e se tornar uma chuvinha fininha, daquelas que batem no telhado e serve de apaziguador das tormentas interiores, a melhor opção é continuar na labuta e tentar, mesmo que pese nos ombros, transformar a cruviana numa tormenta que mexa com os telhados alheios, especialmente, os dotados de impermeabilização neurais.
Prezado amigo Raimundo Antonio,
Você é sempre imprevisível, no bom sentido, enquanto escritor. Surpreende até mesmo num breve comentário desses que produz sobre minhas crônicas. Mais uma vez, portanto, achei sua análise muito interessante, peculiar. Obrigado pela leitura e depoimento.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Boa noite, amigo poeta!
Encantada com seu pensar poético, mesmo que carregado de emoções conflitantes. A forma que desenha a sua escrita, para traduzir o que move seu espírito guerreiro, é de uma beleza ímpar. Continue nos presenteando com textos maravilhosos, poeta. Abraços das terras do Norte! Feliz dia dos pais, Marcos Ferreira! ❤️
Querida Rizeuda da Silva,
Boa tarde.
Sua leitura e avaliação destes meus escritos são sempre um grande estímulo. Mesmo estando eu em uma fase emocionalmente pouco favorável. Muitíssimo obrigado. Segue para você, nas asas de uma pacata cruviana, um beijo grande aqui das bandas do Nordeste.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
De Cruviana a Cruviana você vai apagando a lenha que alimenta a fogueira das vaidades. É isso aí. Texto enxuto, que emoldura o contexto existencial humano, em seus emblemáticos contornos espirituais. Paralelas em espirais, delineantes de filigranas cotidianas. Deixou boquiabertos os renomados e celebrados Filósofos populares Frei Molambinho e Quincas Berro-D’agua. Abraçaço xará !.
Estimado xará Marcos Pinto,
Boa tarde.
Este seu depoimento, como de outras vezes, muito me honra e me encoraja no tocante a continuar produindo, escrevendo outras coisas para este ilustrado Canal BCS – Blog Carlos Santos. Por sua invulgar inteligência e perspicácia, portanto, devo dizer que, apesar de certos obstáculos, hoje me sinto motivado a produzir, a lidar com os vandavais e cruvianas da literatura.
Forte abraço e uma ótima semana para você.
Marcos Ferreira.