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domingo - 28/07/2024 - 09:00h

Moagem

Por Bruno Ernesto

Foto de Carla Janine

Foto de Carla Janine

O açúcar, carboidrato cristalizado, atualmente elevado à categoria de vilão-mor da saúde pública, nem sempre foi tão combatido. Pelo contrário, entre os séculos XV e XVIII, os europeus consideram-no como sendo o ouro branco, ao lado das famosas especiarias da Índia.

Se você lembra bem das aulas de história, o Brasil, segundo consta, só foi descoberto, e por acaso, na busca de uma nova rota para as Índias, visando as tão cobiçadas especiarias que, até hoje, podemos ver nas prateleiras dos supermercados, convenientemente embaladas em pequenas porções de cravo, canela, noz-moscada, pimenta preta, gengibre, açafrão e tantas outras, e que dão aquele toque de mágica nas comidas.

Faço um destaque, entretanto, a respeito da descoberta ocasional do Brasil, que a historiografia oficial convencionou, quase como um dogma, com todas as vênias possíveis, e ouso discordar dela.

Desde que li, há uns vinte e cinco anos, o livro “Dois Ensaios de História: A intencionalidade do descobrimento do Brasil. O mais antigo marco de posse”, publicado em 1965 pela Imprensa Universitária do Rio Grande do Norte, e que é de autoria do mestre Câmara Cascudo, cruzei essa linha da história oficial, e me inclinei para a sua tese.

Em resumo, ele defende que o local da chegada dos portugueses ao Brasil foi em Touros/RN, e que o monte avistado não era o Monte Pascoal, da Bahia, e, em verdade, tratava-se do Pico do Cabugi, localizado em Lajes, no Sertão central do Rio Grande do Norte, e que a rota da famosa viagem já estava bem traçada. Não foi um mero acaso.

O famoso Marco de Touros ainda pode ser visto no interior do Forte dos Reis Magos, ou, como diziam os holandeses, o Castelo de Keulen, em Natal, digo, Nova Amsterdã. E caso tenha curiosidade de ir conhecê-lo pessoalmente, aproveite e visite o Instituto Câmara Cascudo (@institutocascudo) e conheçam Daliana e Camilla Cascudo, as netas do velho mestre, que preservam todo o seu legado. Certamente será uma experiência incrível.

Embora a exploração do Pau-brasil tenha sido um dos produtos mais emblemáticos da história do Brasil, foi o açúcar a mola propulsora de sua ocupação e desenvolvimento econômico durante os séculos XVI, XVII e XVIII, e que moldou, especialmente, a região Nordeste, e hoje, ainda tem marcante presença em sua economia, notadamente no Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia.

No caso do Rio Grande do Norte, quem sai de Natal e ruma para os Estados da Paraíba e do Pernambuco, verá canaviais a perder de vista e usinas de beneficiamento margeando a BR-101.

Especificamente no caso do açúcar, historicamente, pode-se estabelecer que após a Guerra dos Cem Anos (1463), travada entre os reinos da Inglaterra e da França, ao final da era Medieval, houve uma verdadeira explosão de procura por esse ouro branco.

Como a história conta, após trinta anos da chegada dos portugueses ao Brasil, e já na iminência de perdê-lo para Espanha, foi assinado o famoso Tratado de Tordesilhas, tendo Portugal dividido o Brasil em Capitanias Hereditárias e seus donatários, tendo, ao fim e ao cabo, prosperado apenas as Capitanias de São Vicente, de Martim Afonso de Souza, e a Capitania do Pernambuco, de Duarte Coelho Pereira, eminentemente produtoras de cana-de-açúcar com utilização de mão de obra escrava, outro traço marcante para a formação do Brasil.

No período colonial brasileiro o açúcar era um produto tão importante economicamente, que os holandeses invadiram e tomaram grande parte da região Nordeste, ocupando-o entre os anos de 1630 a 1654, no chamado Brasil holandês, com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, cuja história também abordei em outra oportunidade (//blogcarlossantos.com.br/areia-branca-e-os-holandeses/).

Não obstante a exploração em grande escala do açúcar na região Nordeste tenha se dado predominantemente em seu litoral, é inegável que tal cultura também deixou grandes marcas no interior, embora sendo uma região semiárida, que é praticamente desfavorável à tal cultura, tanto com relação ao solo, mas, especialmente, quanto ao clima.

É muito comum nos deparamos com engenhos de cana-de-açúcar no interior do Estado do Rio Grande do Norte e, para mim, a cultura da cana-de-açúcar é elemento familiar central.

Meus avós maternos, são originários do litoral Sul do Rio Grande do Norte, sendo minha avó materna de Tibau do Sul, nas proximidades da famosa e badalada Praia da Pipa, e meu avô de Pedro Velho/Canguaretama, onde se localiza o famoso Engenho Cunhaú, construído em 1604.

No que tange à minha família parterna, ela tem origem no Sítio Serra de São Miguel, atual município de Almino Afonso/RN, e que está localizado na Serra dos Três Cabeços, onde mantém o sítio há quase duzentos anos.

Ao que consta, os primeiros membros se estabeleceram na região por volta no início do século XIX, e, desde então, cultivam cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, alfenim, mel de engenho e, claro, açúcar; e de lá, tenho muitas e inesquecíveis memórias das moagens da cana-de-açúcar.

Nesse período, há convergência de muita gente das cidades próximas e de meus parentes que vão ao engenho, erguido dentro da propriedade, e único que resistiu ao tempo. Embora, quando criança, tenha chegado a ver em funcionamento cinco, nos sítios vizinhos.

Lá eu me empanturrava de caldo de cana, raspa de rapadura e muito mel e, embora a produção não seja em escala industrial, a tradição continua.

A despeito da tradição, ela é tão intensa, que meu pai, enquanto vivo, jamais se desfez ou deixou se desfazerem das terras da família, engendrando esforços para adquirir parte delas e persuadindo meu tio Chiquito, único parente que remanesce habitando o local há quase oitenta anos, a manter a tradição da moagem, que ocorre sempre entre os meses de agosto e setembro de cada ano.

Embora praticamente sem muita esperança de ver a tradição ser mantida em razão de diversos fatores, especialmente por falta de quem a mantenha – o que de fato é muito desafiante -, espero ansiosamente, a próxima moagem e poder sentir aquele cheiro de caldo-de-cana fervente.

E para matar um pouco a saudade e manter a esperança, preservo em Natal, ao pé da churrasqueira, um pé de cana-de-açúcar que meu pai plantou há mais de quinze anos, de uma das mudas que ele trouxe de Viçosa/MG, para renovar o canavial do sítio da família.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Maria de Fátima Oliveira diz:

    Meu reconhecimento ao significado de seu texto ,que exalta a História do nosso Rio grande do Norte, com destaque p/ o cultivo da cana de açúcar e consequentemente a fabricação do mel e demais derivados. Gostei de suas referências a serra de São Miguel e Três cabeços, ALMINO AFONSO,pois esses espaços fazem parte da minha História. Sou interiorana do Auto Oeste do Rio Grande do Norte. Enfim, não concordo com a tese da troca do Monte Pascoal p/ Pico do Cabugi, na descoberta do Brasil, pq na minha opinião o Pico do Cabugi fica muito distante do Litoral, não havendo assim condições de tais descobridores terem o avistado mesmo sendo de um Navio ou qualquer outra embarcação de grande porte. Ou existe prova dessa possibilidade de algum ponto do Atlântico Norte Riograndense dá visão p/ o Pico do Cabugi? Desculpa,aproveitar do seu texto para expor minha dúvida. Obrigada p/ oportunidade. Parabéns por seu texto. 28/07/2024. ATT: Fátima Oliveira.

    • Bruno Ernesto diz:

      Obrigado pela leitura, Maria de Fátima. Que bom que gostou do texto. Não há lugar melhor que o interior do
      Nordeste. Quanto à tese do Pico do Cabugi, tive a oportunidade de conversar com vários pescadores lá de Caiçara do Norte/RN, que é vizinho à Touros/RN, e fiquei surpreso ao saber deles que, no alto mar, eles têm justamente o Pico do Cabugi como referência do continente. Interessante, não é? Um forte abraço!

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