Quando amanheceu nas lonjuras daquele lugarejo, ponto limítrofe entre a zona urbana e a rural, onde os raios da manhã surgiam mais cedo que na selva de pedra, a jovem senhora Ruth, de quarenta e um anos, dispunha apenas de uma soma hoje equivalente a trinta reais para adquirir o alimento para os filhos — dois meninos miúdos e três meninas maiores que os irmãos, todos com idades entre dez e quatro anos. Esta, portanto, a prole do carroceiro Pedro e da lavadeira Ruth.
Era meados de 1980. A carestia campeava e impunha privações e infringia constrangimentos às famílias mais pobres daquela localidade de Barreiro Seco. Com as sombras a ocuparem a maior parte da precária residência, edificação composta de madeira e barro, a mulher desarmou a rede dela e a do marido, que já havia saído para o Centro, especificamente o entorno do Mercado Central, em busca de pequenos fretes. Algo incerto e minguado naqueles tempos de escassez. Não raro o senhor Pedro Soares, já pegando cinquenta anos, regressava de mãos abanando. Tirava o chapéu, pendurava-o numa ponta de ripa da parede, e meneava a cabeça negativamente perante Ruth. Com esse simples gesto ele não carecia de falar mais nada.
Cedinho, então, as crianças começaram a acordar. Todas analfabetas, a exemplo dos pais. Àquela altura Ruth se antecipara e dera um pulo até a única panificadora nas imediações e adquirira boa quantidade de pães da véspera, que afinal de contas pensava-se tão nutritivos quanto os assados minutos antes e custavam a metade do preço. Daí a pouco o leiteiro gritou lá fora. Nesse dia, no entanto, os Soares tomariam apenas o café preto, cujo pó fora reaproveitado da tarde passada.
A senhora Ruth desenrolou a esteira de palha sobre o chão batido da cozinha. Essas peças artesanais eram uma opção bastante utilizada pela gente pobre, quase sem mobília. Um tanto bamba, a única mesa de que dispunham não comportava todos. Na cozinha dos Soares, além de um fogão a lenha, cuja tisna enegrecia as paredes e as picumãs que rendilhavam o teto, contava-se com dois potes de barro para água de beber e cozinhar. Existia, ainda, um paneleiro de metal enferrujado. Não tinham luz elétrica. Lamparinas de querosene ardiam até certo horário da noite. Dentro em breve o carroceiro as apagava e todos se aquietavam nas suas redes.
Ruth apresentava nos olhos castanhos um brilho de regozijo. Possuía experiência em não ter o que oferecer às suas crias em diversas manhãs e noites. Naquele instante, entretanto, a situação os favorecia. Oposto de outras vezes, quando as refeições se resumiam a farinha misturada com açúcar ou café aguado.
Nos últimos meses, quem sabe por causa da inflação nas alturas, ela estava sem conseguir dinheiro regularmente. Sobretudo porque a sua principal cliente, casada com um médico da Marinha, fora embora com o marido para Alagoas, onde ofereceram ao homem vantagem econômica e progressão na carreira. Os demais serviços que Ruth adquiria não passavam de rendimentos pinga-pinga. Pedro sustentava a barra mais pesada, embora o seu lucro também fosse imprevisível.
Os meninos se mostravam felizes. A mãe dispôs a garrafa do café, os pães dormidos, meia lata de margarina e umas batatas-doces que guardara da noite anterior. Viviam um momento de modesta fortuna. Os rebentos comiam gulosamente. Copiando a genitora, um deles colocou uma colherinha de margarina no café, conferindo a este um sabor especial. Era mais um dia sem o pesadelo da fome.
Marcos Ferreira é escritor
Parabéns companheiro, l
Obrigado, amigo Campina.
Abraço e uma ótima semana para vocês.
Saúde e paz.
Esse passado está presente ainda hoje; nos que vivemos numa bolha, bolha de não enxergar o semelhante dizemos: emocionante de fazer chorar.
Um abraçaço
Prezado amigo.
Obrigado, mais uma vez, pela atenção e carinho.
Precisamos nos ver.
Abraços.
Muito triste a pobreza com a ausência de alimentos. Não passei fome. No tempo do fiado de caderneta, meu pai comprava e a gente nunca foi dormir com as tripas roncando. O baixinho se desdobrava em várias atividades pra sustentar cinco filhos e não deixar faltar nada. O dono da bodega tinha confiança absoluta nele e a caderneta era em via única e ficava na mão do comprador. Honrou todos os pagamentos. Imagino o quanto dói não ter comida! Não sou de comer muito mas não consigo dormir se não estiver alimentada. Por outro lado, há um desperdício enorme com as riquezas concentradas nas mãos de poucos. Não faço discurso de socialismo mas não fico indiferente à tanta miséria que vemos nos semáforos. Pessoas pedindo! Pessoas sem presente e sem futuro. Sempre batalhei pra conseguir um melhor lugar ao sol: dei aulas particulares de reforço a crianças com dificuldades na escola; fui manicure; passei jogo do bicho (aos 08 anos já ajudava papai que gerenciava uma banca); costurei sandálias de couro; estudei muito e estava sempre entre as melhores notas. A vida não era fácil. Tudo muito medido! Graças a Deus! Aprendi a valorizar as conquistas! Seu conto é muito real, amigo Marcos! Um abraço de boa semana! Muita saúde e paz!!!
Querida Bernadete,
Cada vez mais sua amizade e personalidade me encantam. Você, a exemplo de outros, é um lindo exemplo de quem dá a volta por cima. Uma inspiração para mim. Grato por seu depoimento. Uma semana abençoada para você.
Abraços.
O texto retrata, de forma brilhante, a triste realidade de milhões de pessoas. Fome e miséria.
Marcos Ferreira nos oferece um conto que faz refletir sobre os valores da vida.
Parabéns, amigo.
Abração!
Dor e fome não se medem, cada pessoa vive a sua.
Nunca passei fome, mas não tive uma família abastada na minha origem e nem na minha adoção.
A sua escrita, partindo da década de 1980 me fez lembrar a herança inclusive do que muitos veem como paraíso, a Ditadura Militar. Esta que nos legou uma década perdida que veio um alento, o Betinho. Não o que temos no País de Mossoró, mas o que combateu a fome.
Interessante Marcos, a História não costuma se repetir ao pé da letra. Entretanto, temos muitos Pdros e Ruths com seus filhos na contemporaneidade. E os sobreviveram a pandemia com seus filhos, mesmo que com pouco recursos, possuem uma fortuna não modesta, mas imensurável, estão vivos!
Um forte abraço meu amigo, poeta e escritor! Valeu Marcos!
Oi amigo Marcos, no quarto parágrafo da peça em tela você rabiscou uma aquarela por mim presenciada em diversas residências da minha terra berço Portalegre, quantas e quantas vezes vi e cheguei até compor o sentido figurado de uma mesa feita com esteira tecida com palhas de carnaubeiras, a peça era desenrolada e colocada no centro da cozinha de chão batido, e nesta as mães colocavam os pretos feitos para alimentar os filhos, e vez por outra o marido também.
Como sua crônica de hoje me remeteu aí tempo de pobreza… mais aonde havia respeito hierárquico oriundo dos nossos pais e até avós.
Que bom Marcos, é ter você conosco para aguçar a nossa vontade de ler, aprender e recordar.
Amigo: se você não existisse iria encomendar ao nosso Deus, um Marcos Ferreira igualzinho a este que todos os domingos aparece com tão brilhantes crônicas aqui no BCS.
Gratidão Marcão!!
Inté o próximo domingo, com mais um quadro supimpa!