Por Marcos Ferreira
Alguns livros a gente termina de ler, digamos assim, para não perder a viagem. Ou tornar menos inútil o tempo investido. Daí que só acabei a leitura de certos “clássicos” (locais quanto planetários) porque já havia, embora a duras penas, atravessado mais da metade do rio, ainda esperançoso de que a segunda margem reservasse algo de compensador para o final da travessia.
Embalde. Fica-se no prejuízo e pronto. Não é possível você tocar no ombro do dito-cujo e dizer: “Ei, Fulano, dê-me de volta o tempo que empreguei na leitura do seu ‘clássico’. Não me serviu. Sobrou pano em cima e faltou embaixo.” Não dá. O máximo que podemos fazer é acendermos uma vela em respeito às árvores que foram ceifadas para o fabrico daquele papel.Estou sendo indelicado? Possivelmente. Talvez delicadeza não seja o meu forte. Se, porventura, possuo algum. Ressalto, no entanto, que é necessário botarmos os pés na água para sabermos se esta é rasa ou profunda. Tal preceito se aplica à literatura. É leviandade, para dizer pouco, aplaudirmos ou reprovarmos um determinado livro e seu autor sem sequer molharmos a ponta dos dedos.
Após quebrar a cara dezenas de vezes, influenciado pela reputação de algumas “lagoas azuis”, hoje em dia não pulo mais de ponta-cabeça nas correntezas da literatura. Vou devagarinho, banhando-me aos poucos, aclimatando-me com uma cuia. Nada de choque térmico. Careço sentir a temperatura da água, observar o termômetro, averiguar a voltagem da escrita. Mesmo que seja o autor um marinheiro de primeira viagem na ficção, como é o caso do escritor mossoroense David de Medeiros Leite. Sim.
David Leite acabou de dar à luz o seu primeiro romance: “2020”. Título intrigante quanto lacônico. Estreia, no mínimo, respeitável. Cumpriu, com absoluta competência, sua travessia no oceano das letras romanescas, sem fazer água, sem se perder na costura do enredo nem da linguagem. Não arremedou escritor algum, não afetou erudição e, muito menos, surfou na perigosa onda do rebuscamento. Entretanto, com domínio da pena e do tinteiro, zela pelo nosso idioma, oferece um “2020” atemporal, com riqueza de detalhes e verossimilhança, sob a proposta fictícia.
Conciso, “2020” tem pouco mais de duzentas páginas. O bastante para que David Leite trouxesse a lume um romance de estreia bem-sucedido, sem pontas soltas, cosido com a precisão e propriedade de um autor familiarizado com temática escolhida para o aparelhamento do seu enredo.
Apresenta-nos, competentemente, repito, as memórias de José Silvestre de Araújo, religioso que larga sua vida na Ordem Carmelita, no Recife, e se abala para Mossoró obcecado por encontrar uma botija supostamente oculta nas ruínas da Casa do Carmo. É uma história que não cai no lugar-comum da fantastiquice, mas que adquire singularidade por meio de um personagem expressivo, plausível e não menos singular.
Faz o mergulho valer a pena.
Agora estou aqui, sentindo-me de todo embevecido, imerso no mais profundo êxtase, com uma obra superior. Trata-se de “Peregrina”, novo livro de versos da excepcional poetisa (mossoroense por adoção) Kalliane Amorim, que me orgulha de ser seu contemporâneo. Como escreve bem essa moça, cuja trajetória literária tive a satisfação de acompanhar desde o tempo em que fui editor do caderno de cultura do Jornal O Mossoroense, há exatos vinte anos.
Há época, já com uma verve diferenciada, Kalliane me forneceu alguns dos seus poemas para publicação. Daí por diante, com luz própria, com uma impressão digital inconfundível entre nossos autores, essa mocinha terna, franzina e muito corajosa agigantou-se, sobressaiu-se. Conquistou, inclusive, o concorrido Prêmio Luís Carlos Guimarães de Poesia (2005), da Fundação José Augusto, em Natal-RN.
Como o romance de David, “Peregrina” saiu em uma caprichada edição da Sarau das Letras Editora. Traz primorosas ilustrações de Nilton Xavier e projeto gráfico de Augusto Paiva. Até a dedicatória que a autora me fez em um exemplar do livro, que não reproduzo aqui por mero pudor, é quase um poema, tão especial é a sua intimidade com o manejo do alfabeto.
Kalliane Amorim é uma escritora que atingiu a maioridade no ofício da escrita. A seu favor, entre outros méritos que me furto a esmiuçar, possui uma acuidade artística como poucas vezes observei nesta seara das letras potiguares. Não se contenta apenas com o propósito de comunicar, de se fazer entender, mas também chama para a si a responsabilidade de oferecer ao leitor algo além da rima, da métrica ou daquilo que ouso definir como poesia do enter, quando o sujeito comete um fraseado à toa e sai quebrando as linhas. Não.
O VERBO DE KALLIANE é joia burilada, trabalho de ourives. Ao mesmo tempo em que sua sofisticação, esmero com a polidura não compromete a mensagem, transmitida sem prejudicar o entendimento. Isto me recorda o português padre Antônio Vieira, quando diz:
“Aprendemos no céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo (…); muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem”.
O tato, a sensibilidade artística e a poética de Kalliane estão nesse patamar. Nem indecifrável, como tantos que se queixam de ser poetas, nem ao rés do chão. Permite aos que se julgam muito por cima descer um pouco; e aos que estão embaixo, elevar-se.
Do poema “Deserto”, página 71, pinço este fragmento da mais elevada poeticidade: “Assovia tão de perto/ o silêncio do deserto,/ que até posso acarinhar/ o seu flanco aveludado/ como um pássaro de ar.”
Quando crescer eu quero escrever bem desse jeito. “Peregrina” (entre outros relevantes trabalhos da escritora) afiança o que acabei de declarar. Ou deixei de dizer. Então, se querem saber mais sobre o conteúdo de “Peregrina” ou sobre o que narra o romance de David Leite, recomendo que leiam. Pois há muito o que saber.
De minha parte, seguirei com a navegação das leituras, ancorando em um porto-livro aqui, noutro acolá. Atento aos escolhos. Se pressentir que estou em barca furada, salto fora. Isso resulta em menos queima de pestanas, menos desperdício de tempo. Pois, ao contrário do papel, não se pode reciclar o tempo.
Felizmente, portanto, sem querer chover no molhado, o que é quase inevitável, existem aqueles autores e obras que fazem valer cada minuto que destinamos às suas páginas. Quem já leu, por exemplo, um “Memórias do Subsolo”, um “Humilhados e Ofendidos”, sabe do que estou falando.
De um modo geral os russos dominam os mares da ficção. Dostoiévski é um monstro, um monumento, uma força da natureza. Assim como Tchekhov e Tolstói. Machado de Assis e Graciliano Ramos, não necessariamente nessa ordem, outros dois ícones supremos da literatura brasileira.
Li e reli Graciliano (vai a metonímia) até mais do que li Machado. O bruxo do Cosme Velho, meritoriamente, é o grande astro da cena literária tupiniquim. No entanto o velho Graça é o meu fraco.
Refestelei-me sobre “Angústia” e “São Bernardo” — quero citar apenas esses dois — não sei quantas vezes. Coisa que não se deu com a obra de Machado. Estou devendo ao autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Então, para ficarmos apenas entre a Rússia e o Brasil, “Crime e Castigo” e “São Bernardo” representam para mim o que há de melhor na ficção.
Dostoiévski e Graciliano, feito Augusto dos Anjos na poesia, são ímpares, desconcertantes, singularíssimos. Extrapolam todos os experimentos, as convenções, receitinhas. Deixam na poeira, a meu ver, James Joyce, Miguel de Cervantes, José Saramago, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Gustave Flaubert, José de Alencar, etc. Não ponho na balança só o que é contado, mas, sobretudo, o modo como se conta.
Na minha modesta visão de peregrino das letras, são autores que pegam uma história ordinária, um tema banal, e revestem o paupérrimo assunto com uma espessa camada de ouro. Isto é, tiram leite de pedra, dão peso e rutilância a histórias que resvalariam para a mediocridade ou coisa pior na escrivaninha de outrem.
A literatura, a arte literária, possui essa alquimia. Transforma nonadas, montículos, em grandes montanhas verbais. Como “A Montanha Mágica”, do Thomas Mann, gigante na compleição quanto na qualidade.
Por hoje é só. Hora de recolher as velas e atracar o barco.
Marcos Ferreira é escritor
Belo texto. Marcos Ferreira dispensa comentários.
Prezado Odemirton, grato pela leitura e estímulo. Forte abraço!
Marcos Ferreira, tenho saudades de ler os grandes nomes do nosso jornalismo àquela época de jornal O Mossoroense, também de GAZETA DO OESTE. Eram tempos bons. Lembro-me bem de abrir as páginas e encontrar artigos seus, de Mário Gerson, da Kalliane Sibelli e tantos outros. Hoje, nossos jornais são só saudades. Por onde anda o pessoal da nossa literatura?