"O Pasquim" tem a idade exata da ditadura brasileira. Não, não estou certo, como de costume. Jango foi derrubado em 1964, mas até dezembro de de 1968, o AI-5, dava para respirar.
Foi em 1969 que nos tentaram asfixiar politicamente. A alguns fizeram mais que isso… O Pasquim respondeu. Não direto. "No" pedal.
Respondeu no deboche que "eles", gente de poucas luzes, têm certa dificuldade de entender. Debochando de tudo que era ideal propagandístico do sistema, A Família, Fidelidade, Castidade, Heterossexualismo, Religião, em suma, debochando não necessáriamente dessas coisas em si (o Jaguar é casto e puro), mas da cascata poluída que o sistema construíu em torno delas, debochando do próprio conceito de seriedade da ditadura, o jornal se tornou uma coisa muito séria.
No seu período de maior sucesso, feito que era pelo talento de uma dúzia de pessoas, se tanto, foi o jornal mais atentamente lido no Brasil. Quem se esqueceu, ou não notou, merece não sair do AI-5. Ironias.
Apesar da zorra atentatória aos bons costumes que nos acusavam, nos acusavam aqueles que atentaram contra tudo que de direito pertencia ao povo brasileiro, a moral de quase todos os editores era sans reproche, o que não quer dizer, minha senhora, que fossem chegados a uma brocha, não, não, meu cavalo por um dicionário, adaptando Shakespeare a Figueiredo, não, não, digo, eram moços de boa família, ou de família boa, os moços que toda tarde, terminado o expediente, levavam para casa "O Globo" e 250 gramas de manteiga, ao encontro da patroa, dos bacuraus.
Havia três na esbórnia. Só. O resto levou a fama injustamente. A idéia de que a maioria dos leitores faz dos que escrevem é, em geral, tão próxima da realidade quanto o odor dos canais de Veneza nos sonhos de uma solteirona pré-charter.
O drinque mais forte que o Henfil tomou na vida foi guaraná. Alguém pode imaginar o Ziraldo numa situação comprometedora, remotamente arriscada?
Sonhos de uma noite de verão, ou seja no Rio, diários. Sempre nos demos mais ou menos mal. É impossível outro tipo de relação entre um grupo de gênios autoproclamados.
Mas, meto um apelo, façamos as pazes no décimo aniversário, ao menos enquanto durar o aninho. Em 1980, voltaremos pazerosamente a falar mal uns dos outros. Ok?
Afinal, fizemos o que ninguém disse ser possível fazer: enfrentar a grande imprensa, sem os recursos auto-estrangulantes e estrangulatórios da grande imprensa contra os que ousam fugir de seu conformismo de aluguel. E sobrevivemos. Não é pouca porcaria. E poderíamos colocar no nosso epitáfio: "Não vendido".
Burro se quiserem, mas honesto. E digno de um almirante batavo, com ou sem acento.
O jornal explodiu a língua brasileira, ajudou a livrá-la das teias de aranha dos filólogos, dos sarcófagos, dos gramáticos, do formalismo ridículo do "fi-lo porque qui-lo", das aeronaves e belonaves.
Naquele ano de tortura profunda, 1969, espiritual a tortura para nós (física para outros), o jornal falou desafiadoramente a linguagem de toda uma juventude que fora cortada a cassetete da vida política e cultural.
Ajudou a lembrar que a liberdade é ainda optativa se você fizer uma forcinha.
Nos censuraram. Nos prenderam, nos perseguiram, nos ameaçaram. Nos puseram bombas, nos encheram o saco. Sobrevivemos. Ganhamos.
Eles serão escritos por nós. Deus sabiamente negou a "eles" o dom da palavra. Zurram. Nós teremos a última palavra para nossos verbetes…
Paulo Francis (1930-1997) – Foi jornalista e escritor. Este texto foi veiculado em 1979, comemorando mais um ano de vida do jornal "O Pasquim", símbolo da resistência inteligente, com bom humor, à ditadura militar. Atualíssimo.
Esse filme,se brincarem,se repetirá,um novo barbudo,contra as idéias defendidas pelo velho barbudo,o novo barbudo defende o que antes era impensável pensar e como antes e agora se diz: “Toda unanimidade é burra”