Por Carlos Santos
Ídolo no Brasil, o ex-jogador de futebol Zico conseguiu um feito maior do outro lado do mundo: ser unanimidade. No Japão, a terra do ‘sol nascente, ajudou a difundir e consolidar o esporte, sendo uma instituição à reverência do povo japonês. Atuou como atleta e foi treinador.
O que fez Zico para tanto? Dessa distância que parece infinita, as informações disponíveis apontam para o seu sucesso como reflexo do talento como jogador e treinador do esporte mais popular do mundo. Parece evidente. Diria o cronista-dramaturgo tricolor Nelson Rodrigues que é o “óbvio ululante”.
Apresso-me em assinalar, que Zico é-me uma admiração, apesar dos aborrecimentos que me causou com a camisa do Flamengo, fazendo vários gols contra meu Fluminense. À minha memória, recorro à sua imagem para fazer digressões sobre a convivência humana e os questionamentos que fazemos quanto ao que é moral ou não. O certo, o errado, o válido para vencer.
Numa entrevista à televisão brasileira, coisa de muitos anos atrás, Zico retratava a rigidez de valores da sociedade japonesa, que também eram preservados no futebol. O esporte não era um mundo à parte; era microcosmo do próprio Japão milenar, em que a honra não é uma exceção, mas regra.
Zico identificou – relatando fatos na entrevista – que na cabeça dos jogadores nativos era incompreensível o uso da esperteza, o famoso ‘jeitinho brasileiro’, para tirar vantagem sobre o contendor. Narrou um caso específico: na cobrança de falta, as regras do futebol estabelecem que a barreira de jogadores adversários deve ficar a uma distância de 9 metros e 15 centímetros da bola.
Orientados por Zico de que deviam avançar ardilosamente para dificultar o chute adversário, os japoneses relutavam. Pareciam não compreender a instrução. Entreolhavam-se e resistiam. Não se tratava de conflito linguístico entre o português e a fala oriental. Era um atordoamento da esfera moral. Para os jogadores, era inadmissível aquela malandragem.
A capacidade de absorção de orientações técnico-táticas, a dedicação a treinos, a disciplina, a tenacidade e a perseverança caracterizavam os atletas japoneses. Difícil era fazê-los compreender que certos “macetes” não seriam uma desobediência à norma, mas uma engenhosidade – como é comum a esse povo que renasceu das cinzas após a capitulação na 2ª Guerra Mundial.
Enfim, essa malemolência brasileira, que poderia ser sintetizada pelo personagem “Macunaíma” de Mário de Andrade, “um herói sem nenhum caráter (anti-herói)”, esculpe muitos de nós de uma forma real. Não seria inteligente ser correto – define seus apologistas. A mesma natureza do personagem “Paulo Maurício Azambuja”, típico malandro carioca: ex-jogador de futebol, ex-sambista e trambiqueiro por excelência. Chico Anysio deu-lhe vida ainda nos anos 70.
“Quem anda na linha é trem”, fala a sabedoria de botequim. “O mundo é dos espertos”, proclama outra leva de brasileiros, com pinta de ‘171’ (artigo do Código Penal Brasileiro que trata do estelionato).
Essas e outras frases de efeito viraram lugares-comuns do ardil de um povo. Seriam parte de nossa identidade miscigenada, tropical, inventiva. Poderiam ser sintetizadas na famosa “Lei do Gérson”, que a propaganda brasileira ofereceu como contribuição imaterial à nação de arrivistas que tem caracterizado o Brasil.
Para chegar ao topo vale qualquer mutreta. “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica,” defendia o ex-jogador de futebol Gérson, nessa propaganda (1976), com um ar asséptico, citando a marca de cigarros. A partir daí, toda bandalheira com o dinheiro público, principalmente, passou a ter o selo de ‘qualidade’ da Lei do Gérson.
Na CPI do “Carlinhos Cachoeira”, há poucos dias, o empresário Walter Santiago soltou um risinho sarcástico e friccionou um dedo indicador contra polegar, para dizer que eram umas “coisicas de nada” R$ 1,4 milhão usados por ele para comprar uma casa do governador goiano Marconi Perillo (PSDB). Só não lembrava a origem da grana. Tinha a bufunfa em casa. “Coisicas de nada”, repito.
Normal, tudo normal. Faz parte de nossa cultura, de nosso cotidiano multissecular, desde os remotos tempos do Brasil Colônia. Chegou com as caravelas portuguesas, podem diagnosticar alguns estudiosos, imputando aos lusos esse peso. Escapismo.
O relativismo moral de boa parte dos brasileiros tem incontáveis explicações. Elas saem da antropologia, da psicologia social ou da sabedoria das ruas. Mesmo assim, lançam mais dúvidas do que certezas, isso sim. Ser inteligente, então, não pode ser confundido com “ser sabido”.
O alpinismo social, financeiro e político imprime a obrigação – para muitos – de ser trapaceiro. “Feio é perder”, garantem os seus mais legítimos representantes. Não ter palavra, para se dar bem, “é assim mesmo”, repetem tantos porta-vozes da iniquidade.
Para quem tem obrigação de educar provoca embaraço. Por vezes a gente se depara com dúvidas, que produzem uma bifurcação abstrata no campo dos valores humanos. Cá um exemplo: à mesa de uma conversa amistosa, com dois amigos, um deles – com pouco mais de 40 anos, solteiro, sem filhos, admite a preocupação prévia com a paternidade, com as crias que não têm:
– As coisas estão tão difíceis que não sei se vou ser pai um dia. Se for, eu devo educar meu filho para ser esperto ou ser um idiota, fazendo tudo certinho? É minha dúvida – resmungou ele.
Arqueei-me, com braços sobre a mesa, para me aproximar mais do meu interlocutor e falei sem muito alarde o que realmente pensava sobre tudo isso:
– Eduque seus filhos para serem felizes. Só isso!
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