Por Marcelo Alves
“Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert (1821-1880), é uma obra-prima. Está entre os melhores romances já escritos. Para alguns, é mesmo o melhor. E eu ainda me lembro das sensações que tive quando o li, lá pelo final da minha adolescência, começo da vida adulta. Foram de um realismo de fazer corar os mais pudicos.
Parcialmente inspirado em um caso real, o enredo conta as aventuras e desventuras de Emma Bovary, nascida Roualt, uma jovem francesa que se casa com o médico provinciano, extremamente trabalhador, Charles Bovary. Apesar da paixão do marido por ela, Emma sente muito pouco por ele.
À própria falta de amor, ela compensa imaginando os amores que lê em livros/estórias românticas. Ela lê Walter Scott (1771-1832) e outros menos votados. Quando um dia Emma frequenta um baile promovido pela nobreza de então, ela ali se mistura, entre nobres e ricos, e imagina que nasceu para viver aqueles sonhos. E esses ideais românticos acabam por destruir seu casamento e sua vida (já paro por aqui, para não fazer mais spoiler).
“Madame Bovary” não teve uma vida fácil. Não falo aqui da personagem, mas, sim, da obra/romance de Flaubert. Ela tratava abertamente de adultério, de suicídio, era anticlerical, era feminista. Como era praxe à época, ela foi antecipadamente publicada em folhetins, já em 1856, na Revue de Paris, de Maxime Du Camp (1822-1894). Fez escândalo. “Obscena, imoral”, gritaram. Tentaram proibi-la. Era o reacionarismo, o puritanismo, o machismo e um monte de outros “ismos” que vemos ainda hoje, infelizmente, pipocar em algumas cabecinhas coroadas.
Em fevereiro de 1857, a revista, o seu editor e Gustave Flaubert, este até então desconhecido do grande público, foram processados e julgados na França, por um tal “ultraje à moral pública e religiosa e aos bons costumes”. Apesar da insistência da procuradoria, embora criticados pelo “realismo vulgar e frequentemente chocante” da personagem principal, eles foram absolvidos. Aliás, anos depois, como informam Nicholas J. Karolides, Margaret Bald e Dawn B. Sova, em “120 Banned Books: Censorship Histories of World Literature” (Checkmark Books, 2011), o editor inglês de Flaubert também veio a ser processado no Reino Unido.
De nada adiantou essa zoada toda. Talvez tenha até surtido um efeito contrário ao pretendido. Publicado integralmente em 1857, alguns meses após o processo francês, o romance fez um sucesso retumbante. A madame ganhou o mundo.
Como obra literária, “Madame Bovary” inaugura o realismo. E talvez isso já bastasse para garantir seu lugar na história. Mas a sua qualidade artística é também inconteste. Como anota Jean-Claude Berton, no pequenino mas interessantíssimo “50 romans clés de la littérature française” (Hatier, 1993), ao polir cada frase, Flaubert desejou – e conseguiu – “fazer da linguagem a matéria do romance”.
Quanto ao conteúdo, é uma obra libertária. Fez um bem enorme ao feminismo. Trouxe para debate o divórcio, que, antes previsto no Código de Napoleão (1804), a Restauração na França havia abolido. Uma nova consciência do drama, em especial para as mulheres, de uniões viciadas, levou em 1884, após lutas parlamentares e de opinião, à reintrodução do instituto no país, independentemente do consentimento mútuo dos cônjuges, embora limitado a causas específicas. Gradualmente, foi-se impondo, em outros aspectos, a proteção da autonomia da mulher e do seu patrimônio. Botem isso também na conta, em boa parte, da Madame Bovary.
Por fim, a estória de Emma é interessantíssima sob o ponto de vista filosófico, notadamente quanto ao denominado livre arbítrio. Ela nos mostra que, quando se busca a felicidade, podemos pegar o caminho que nos leva à tragédia.
Bom, repito: de nada adiantou censurar o caso de Emma. A história ensina que é proibido proibir uma obra-prima. O escândalo fez-se sucesso. E o legado da madame é enorme.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Enfim, um resenhista à altura de. Massa.