Por Marcos Ferreira
“Sabemos o que somos, mas ignoramos
o que podemos nos tornar.”
(William Shakespeare)
Hoje pela manhã, antes das nove, eu já estava diante do médico. Entregou-me um tipo de envelope de papel grosso e luminoso com duas folhas contendo o resultado dos últimos exames. Nossa conversa foi direta. Mal tive tempo de assimilar aquela informação devastadora. Sendo franco, a ficha ainda não caiu. Vai demorar um bocado. Apesar de tudo, como veem, começo a escrever.
Pediu que eu me sentasse. Ele se mexia em sua cadeira giratória revestida com um material parecido com couro. Sentei-me. Presumi que a informação que me daria não era boa. Doutor Epitácio Coelho, com a mansuetude de sempre, não fez rodeios. Pareceu-me que não foi (decerto não) a primeira vez que comunicou a um paciente que o fim chegou. Não franziu a testa, não titubeou, não gaguejou. Disse tudo olhando bem dentro dos meus olhos. Perguntei, com voz trêmula, quanto tempo ele achava que ainda me resta. “Uns seis ou sete meses”, respondeu.
O tumor, segundo ele, já se alastrou para outros órgãos, inclusive para os ossos. A sensação que tive nessa hora foi de que a minha alma saiu do meu corpo. O sangue me fugiu. Devo ter ficado tão branco quanto o jaleco do doutor Epitácio. “Não adianta operar. Seria inútil, Fernando. O seu pâncreas está comprometido em quase oitenta por cento”, observou.
Fiz outra pergunta ao oncologista. Indaguei se estava levando em conta a quimioterapia. “Sim. Sem ela, que a essa altura não nos deixa muita opção, talvez você não dure seis meses”, avaliou com absoluta impassibilidade. “Sinto muito”, disse por último, desta vez erguendo as grossas sobrancelhas. Cruzou os dedos alvos e peludos. Estava ali um homem pouco mais velho que eu, alto, magro e com vasta careca. Diante das circunstâncias, falei que não vou me submeter à quimioterapia. Ele balançou a cabeça num gesto de reprovação. Tornou a frisar que assim o meu tempo de vida diminuirá possivelmente em quarenta ou cinquenta dias. Respirei fundo.
— Ok. Mas não vou esperar o fim.
— O que pretende dizer com isso.
— É que vou me antecipar, doutor.
Não falei mais uma palavra. Saí do consultório e me sentei em um banco de jardim na área à direita da clínica, perto de onde eu havia trancado a bicicleta. Fiquei naquele banco de madeira e alvenaria durante uma meia hora. Tempo o bastante para que eu fumasse dois cigarros compulsivamente. Um sentimento de revolta se apoderou de mim. Pensei logo nos nove ou dez livros inéditos que tenho neste computador. Também estão salvos no e-mail. Preciso compartilhar a senha com alguém para que tenha acesso aos arquivos. Aposto na improvável possibilidade de que um mecenas se interesse em publicar minhas obras depois que me for. É o que posso fazer. Deixarei aos amigos mais próximos a incumbência de publicar meus livros.
Não fui para a loja, destranquei a bicicleta, que havia prendido em uma parte de madeira de outro banco, e vim direto para casa. Pensei em telefonar para alguém. A primeira pessoa que veio à minha mente foi Evandro Gurgel. Peguei o telefone, localizei o nome dele, mas apaguei o celular e o larguei em cima da escrivaninha. Nosso relacionamento acabou em novembro de 2023. Semana passada tive notícias de que está com outro homem. Isso mexeu comigo. Ainda me sinto ligado a ele de alguma maneira. Relação tóxica. Evandro Gurgel só queria o meu pouco dinheiro para comprar maconha. Águas passadas.
Agora preciso me fixar na escrita desta autobiografia desesperada. Amanhã irei à loja pedir demissão para obter os valores rescisórios. Terei que falar sobre o câncer. Torço que o patrão seja camarada, que encerre o vínculo empregatício como se a decisão partisse dele. Assim terei direito a alguns benefícios. O próximo passo é procurar a previdência social e requerer um auxílio-doença.
Talvez esta narrativa, que planejo publicar no blogue, tome rumos inesperados e alcance um público muito maior. Quem sabe, por meios que ignoro, isto ultrapasse as fronteiras do estado e até desta nação. Portugal seria ótimo. Não sei por quais destinos o vento conduzirá estas páginas de pessimismo e amargor. Isto está longe de ser um projeto, uma publicação do gênero autoajuda. Não tenho ideia, portanto, do rumo que isto tomará. O mais provável, sendo racional, é que se perca no esquecimento. A exemplo de outros planos que vi sumirem pelo ralo de minha vida.
Vim à luz e vivo em Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, neste Brasil de tanta politicagem, roubalheiras e gente sofrida. Depois de diversas reflexões e considerações, decidi que vou me suicidar no momento oportuno. Por enquanto, não. Antes, além de outros objetivos, pretendo escrever este livro. Se nunca for publicado, sequer de forma póstuma, não interessa. Muita coisa deixou de ter importância para mim. Melhor dizendo, nada mais me importa. A literatura é a única âncora que me prende a este mundo caótico e mesquinho. Estou cansado, de saco cheio. Cansei de rastejar, de me contentar com migalhas. Nasci e cresci na miséria, passei fome como um cachorro abandonado, mas aos poucos, de um jeito medíocre, sobrevivi à poderosa máquina de moer miseráveis que continua em plena atividade.
Sei que contestarão e vão dizer que devo agradecer a Deus por “tudo” que tenho. Por exemplo, por estar vivo e com saúde. Que saúde?! Porra nenhuma! Ninguém está sabendo de nada. Dirão também que devo me sentir privilegiado porque tenho alguns amigos bacanas, pessoas que de fato me têm consideração e me querem bem. Não nego que isso é verdade. Porém, por diversas razões, já estou farto. Farto da vida. Faço uma rápida análise e vejo que nos últimos tempos me expus demais, e sem necessidade alguma. Dei palpite em temas que não devia.
Esqueci de me apresentar. Para quem não sabe, meu nome é João Fernando Soares Barros. Como literato, no entanto, eu me assino Fernando Barros. Nunca publiquei um livro. Quem sabe, por mais improvável que pareça, este seja o primeiro. Torço, sem querer abusar, que façam uma boa edição. Estou com cinquenta e dois anos, completados no último dia 27 de fevereiro.
Sou o unigênito de Pedro Soares dos Reis e de Amélia Soares Barros, ambos cearenses de Itapipoca. Tenho um metro setenta e dois e peso pouco mais de oitenta quilos. Minha pele é branca, os olhos e cabelos são castanhos claros. A maior parte do meu cabelo já é grisalha. Trabalho atualmente de vendedor em uma loja de peças de motocicleta na Avenida Presidente Dutra. Concluí somente o ensino médio. Ainda tentei duas vezes ingressar no curso de agronomia, contudo fui reprovado. Contentei-me a vida toda com subempregos no comércio.
Analfabeto, meu pai morreu há quase sessenta anos. Tinha só vinte e cinco. Carroceiro, foi atropelado por um caminhão juntamente com sua carroça. Ele e o burro morreram na hora. Minha mãe, lavadeira de roupas e empregada doméstica, findou-se com trinta e sete. Vítima de um infarto fulminante na casa dos patrões, um casal de dentistas que ouvi dizer que hoje mora no Alphaville.
É tarde. São duas e catorze. A tosse voltou. Tomarei o xarope que o doutor Epitácio Coelho me prescreveu. Por onde andará Evandro Gurgel? A julgar pelo horário, talvez já tenha dado e comido a bunda do cara com quem vive e fumado sua maconha. Que se fodam o maconheiro Evandro e o macho dele.
Vou me fechar. Não sairei de casa, não irei a eventos culturais como costumava fazer. Anteontem, por sinal, faltei ao lançamento do segundo livro de poemas de Júlio Rosado. Nesse caso, que fique registrado, foi apenas por esquecimento. Minha memória está prejudicada há um bom tempo. De fato, no entanto, eu não iria. Meu plano era enviar um motobói para adquirir um exemplar de “Alternâncias”, obra decerto de boa qualidade. Sairei, destaco, tão só para cuidar do que for estritamente necessário. Depois desse diagnóstico, a minha fobia social disparou. Espero que o poeta Júlio Rosado possa me desculpar pela ausência em sua noite de autógrafos.
Tenho menos de seis meses para concluir esta narrativa. Será escrita assim, à moda de um diário. Tentarei registrar algumas banalidades de minha vida. Penso no que seria e não encontro nada de muito relevante. De qualquer jeito, como o tempo é curto, talvez eu consiga publicar no blogue todo domingo, um capítulo de cada vez. Também é possível, a depender do câncer, que não vá muito longe. Além disso, preciso pensar em um meio indolor de abreviar minha própria existência.
Marcos Ferreira é escritor
Texto sensacional. Se fosse eu, demoraria os seis meses restantes só para desenvolver a ideia de algo assim Espero que o amigo esteja melhor e já possa sair do casulo temporário que segura seus cambitos secos, à la Garrincha. Mas, parafraseando algo digno de Frida Kahlo, para pernas, se a literatura lhe permite voar. Grato por citar o lançamento de Alternâncias. Em um momento de convalescença e sinal de consideração e apreço a simples lembrança. Marcos Ferreira demonstra ter as qualidades de excelência e fidalguia particulares ao universo poético. Bom domingo, amigo.
* “para quê pernas”
Fui ficando assustada, à medida que lia, pensando ser uma crônica. Também algumas crônicas tem um pouco de ficção, o que, igualmente, assusta. Na verdade, passei a ler as suas publicações, com calma. Não estou dizendo que você não é confiável; você é um ótimo escritor; tem ótimas imaginação e criatividade. Vou esperar o segundo capítulo!
Marco Ferreira, poeta e escritor genial sempre nos surpreende com seus textos. Vez por outra nos prega uma peça, um susto como agora, nesse capítulo 1 do romance que ora nos envia…
Por ter o privilégio de o conhecer de longas datas sei que tudo não passa de uma meta ficção, embora muito bem embustida e ainda escrita em primeira pessoa para instigar ainda mais o leitor. Como a diria a vã filosofia é a arte imitando a vida.
E agora já recuperado do mesmo susto da amiga, Bernadete Lino, espero o capítulo 2 mais aliviado.