domingo - 03/08/2025 - 08:00h

O Efeito Casulo – Dia 10

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Hoje à tarde, ao contrário da inércia que tenho vivido há dez dias, fechado nesta casa à Rua Pedro Velho, no Santo Antônio, feito um fora da lei, um bicho assustado, reuni coragem e coloquei a cara fora. Mas apenas por força das circunstâncias. Depois de hesitar, vesti calça, camiseta, tênis, peguei a carteira, o celular e a bicicleta e fui a um supermercado a cerca de meio quilômetro daqui.

Devo dizer que tive um dia sobressaltado. Aliás, para ser sincero, o simples ato de ir ao mercado é que foi uma experiência desconfortável, senão assustadora. E tudo (sei agora) por nada mais do que caraminholas de meu cérebro enfermiço, receios e sensações oriundos de meu estado de nervos. É isso mesmo. Embora muitas vezes eu me permita abater por alguns mal-estares, fobias e paranoias, tenho consciência de que o problema quase sempre é fruto tão só do meu juízo, desta cabeça exponencialmente perturbada desde que o doutor Epitácio Coelho me apresentou aquele diagnóstico, a condição sem escapatória de meu câncer já em estágio quatro, metastático. Fiquei, e continuo, desconcertado. Não é fácil a gente descobrir de repente que está à beira da morte, com um pé na sepultura, restando poucos meses de vida.

É segunda-feira, 28 de julho deste infeliz (para mim) 2025. Olho o canto inferior direito do notebook e constato que são precisamente dezenove horas e vinte e quatro minutos. O dia inteiro transcorreu nublado, e eu me animei com a acentuada possibilidade de chuva. Dias sombrios, de preferência com chuva torrencial e duradoura, é algo que me agrada sobremaneira. De início choveu pouquinho; fiquei na vontade. Bem, não é acerca de eventos pluviométricos que desejo falar.

Tranquei, antes das cinco da tarde, a bicicleta no estacionamento do mercado e entrei naquele sortido comércio. Contrariando o horário, que eu imaginei não fosse tão disputado, deparei-me com a loja muito frequentada. Considerei excessivo o volume do sistema de alto-falantes, que se referia a produtos em promoção, discurso de local perfeito para economizar, diversas vantagens que, ao fim e ao cabo, têm mais de propaganda enganosa do que veracidade. Incomodou-me também o vozerio, o burburinho da clientela, o vaivém de elementos empurrando carros de compras ou portando cestas de plástico vermelhas.

Fiquei com a sensação de que todos me olhavam com indiscrição, com cenhos carregados. Um tipo de desconforto que me fez imaginar que o nome câncer estivesse escrito em uma placa pendurada no meu peito com letras muito legíveis. Por que me encaravam daquela forma? Não faço ideia.

Daí a pouco uma idosa de maquiagem azul nos olhos arregalados segurou meu braço esquerdo e afirmou com voz roufenha: “Você é um morto-vivo! Não deveria estar aqui. O seu lugar é em uma cova no São Sebastião. Você está se decompondo, começa a cheirar mal. Vai morrer! Se não exatamente agora, entretanto o seu fim está bastante perto!” Meu coração ficou aos pulos.

Na sequência, quando me dei conta, eu estava cercado por pessoas estranhas, homens, mulheres e até crianças; cidadãos de várias idades. Sim. Encontrava-me rodeado, debaixo de olhares carrancudos. Senti que meu oxigênio ia diminuindo lentamente. Aqueles olhos me fitavam com severidade. Cogitei que tiveram acesso ao texto que publiquei no domingo.

Recordei-me, em especial, do comentário de uma leitora chamada Bernadete Lino, de Caruaru, que fez duras e arrazoadas críticas ao meu relato de ontem, 27. O círculo parecia se estreitar. Súbito, como num gesto de desespero, empurrei o meu carrinho por entre a velha e um rapaz e me afastei daquele grupo de elementos mal-encarados. No mesmo minuto olhei para trás; não avistei ninguém. Não daquele modo: aglomerados. Então concluí que aquilo não tinha sido real.

Minha respiração voltou à normalidade, o ar regressou aos pulmões. Virei-me umas duas ou três vezes para ver se estava sendo seguido pela velha raivosa. Nada. Nem sinal daquele rosto iracundo; nenhum outro semblante me apareceu com aspecto aborrecido. Tratei de encontrar (nas seções específicas) os produtos e gêneros alimentícios que me interessavam. Fui ao setor de massas e peguei dez pães franceses, um pacote de bolachas salgadas, um bolo de macaxeira e quase quatrocentos gramas de bolinhas de queijo, iguaria quentinha que a moça acabara de colocar em um recipiente de alumínio cujas bordas tinham cerca de cinco centímetros.

Comprei três pacotes de macarrão, um pote de manteiga, duas barras de chocolate meio amargo, seis pacotes de café, dois quilos de açúcar, leite em pó, creme dental, xampu, sabonetes, três sacos de bebidas lácteas, frutas, verduras, feijão, arroz, queijo de coalho, sobrecoxas de frango, pasta de amendoim, cinco latas de sardinha e outras cinco de atum.

Se não estou me esquecendo de nada, acredito que foram essas as coisas. Dirigi-me a um caixa com fila um tanto menor, arrumei as compras em três sacolas grandes, amarrei as alças destas e consegui acomodar as sacolas no bagageiro da bicicleta com uma corda elástica provida de ganchos nas pontas. Cheguei à boca da noite, a chuva ameaçava retornar, contudo a Pedro Velho (próximo deste meu domicílio) se encontrava cheia de vizinhos com suas cadeiras nas calçadas. Outra vez tive a sensação de que todos passaram a prestar atenção em mim. De imediato refleti e considerei essa impressão semelhante à espécie de surto que tive no mercado.

Com os itens guardados nos devidos lugares, tomei um banho e agora me encontro descrevendo o esforço, a aventura de ir às compras. É óbvio que não existiu nenhuma idosa de maquiagem azul nos olhos proferindo maledicências contra mim, entretanto, no justo instante em que redijo este capítulo, momento em que, felizmente, a chuva voltou com abundância, não pude me esquecer de uma única daquelas palavras de mau agouro: “Você é um morto-vivo! Não deveria estar aqui. O seu lugar é em uma cova no São Sebastião. Você está se decompondo, começa a cheirar mal. Vai morrer! Se não exatamente agora, entretanto o seu fim está bastante perto!” Decorrido todo esse tempo, tal prognóstico ainda me dá certo frio na espinha. Embora a mulher não passe de um delírio, o tipo de mal que me rouba o sono e a paz é concreto.

Não estava nos meus planos morrer com apenas cinquenta e dois janeiros. Exato! Nasci aos 27 de janeiro de 1973. Preciso me reunir o quanto antes com os amigos e escritores Marcos Araújo e Clauder Arcanjo, indivíduos de grande sensibilidade e recursos econômicos, aos quais deixarei a batata quente de publicar meus livros inéditos, inclusive esta narrativa desesperada, correndo contra o tempo. Chamarei os dois aqui para falar sobre minha enfermidade e fornecer algumas orientações acerca da edição das obras que almejo sejam lançadas em edições póstumas.

Não sei se mereço tanto crédito e vultoso investimento depois de morto. Não sou o que se possa chamar de mossoroense exemplar, de literato querido e bem-comportado. Longe disso. Apesar de tudo, torço que meus hipotéticos editores atendam este meu último desejo quase no leito de morte. Se acaso se comprometerem e depois abandonarem o compromisso, asseguro que meu espírito (acaso isso exista) voltará para aturdir esses autênticos luminares de nossa intelectualidade.

Tais cavalheiros honrarão nosso trato.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

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