Por Marcos Ferreira
Ontem voltei do mercado com um bom astral. Neste instante me sinto em paz. Fiz um cessar-fogo com meus fantasmas e monstros interiores. Estão quietos, sem incutir mil e uma diatribes na minha cabeça nem na minha escrita. Devo dizer que, ao menos nas últimas vinte e quatro horas, o meu ímpeto destrutivo, sanguinário, se encontra adormecida. Não deve durar muito. Meu estado de humor pode mudar de um minuto para o outro. Todavia quero dizer que essa condição amistosa, tranquila, tem a ver com o encontro no supermercado com Leopoldo Nunes, hoje operador de caixa e ex-funcionário (por apenas trinta dias) da loja de peças de automóveis, empresa onde estive empregado até a última quinzena. A descoberta do câncer, já em estágio 4, me deixou fora de combate; colocou um ponto final no meu vínculo empregatício após onze anos naquele emprego miúdo. Fui demitido de modo amigável.
Dei entrada para receber o auxílio-doença junto à previdência social. Na semana passada caiu na minha conta-corrente a grana referente aos meus direitos rescisórios. O INSS me concedeu doze meses, entretanto sei muito bem que não vou usufruir nem da metade desse tempo. Agora, ainda que de forma tardia, planejo aproveitar cada momento que me resta. Sobretudo se a visita de Leopoldo na próxima semana resultar em um affaire ou algo parecido.
Durante a manhã iniciei uma parte da faxina. Aos poucos, depois que Rita das Neves Procópio deixou esta casa de herança para mim, pessoa muito amiga de minha mãe e a quem ela prometeu cuidar deste órfão e analfabeto com onze anos. Atingi a maioridade e comecei a fazer determinadas benfeitorias no imóvel depois que Rita se foi para sempre. Os quartos eram compridos, porém estreitos. Contratei um pedreiro e este transformou ambos em um só. A casa, que tem madeiramento de boa qualidade, não era de taipa, ao contrário daquela onde morei com os meus pais.
A moradia da finada Rita é de tijolos do tipo adobe, mas nenhuma das paredes tinha reboco, sequer a fachada. O quintal, considerando especialmente o tamanho deste domicílio, é enorme: são quinze metros de frente e trinta de fundo. Mandei, na primeira etapa dos serviços, fazer ao menos o reboco deste que se tornou o único quarto de que disponho. Com paciência, depois de alguns anos providenciando um servicinho aqui e outro acolá, pude rebocar o imóvel todo. Desmanchei o fogão a lenha na cozinha, que no tempo de Rita enchia as paredes daquele cômodo de tisna. Também iniciei a construção do muro de trás para a frente. Exceto pelo dianteiro, os demais lados têm dois metros e meio de altura. Já o frontal, pensando na ventilação, eu deixei com somente um metro e setenta.
Nos dias atuais, depois de diversos reparos e benfeitorias, conto com uma residência espaçosa e aconchegante, mesmo ela tendo só um quarto. É mais que o suficiente para este solitário escriba. A sala e a cozinha são amplas, ligadas por um corredor de dois metros de largura e cinco de comprimento. Construí uma garagem também espaçosa e um terraço para a área de serviço. Durante uma determinada época acalentei a possibilidade de vender a minha motocicleta e comprar um carro. Mas há uns três anos a moto (uma Pop 2014) foi roubada no Centro.
Mandei os pedreiros (isto na segunda etapa) levantarem duas paredes em forma de um L com cobogós na lateral direita, de modo que o sol nem a chuva impeçam o uso do alpendre da cozinha quando chegam as trezes horas em diante. O terraço dispõe de uma máquina de lavar roupas. A pia da cozinha e da área de serviço, outrora de alvenaria, foram substituídas por pias de mármore. O banheiro também recebeu novo piso, a exemplo das paredes, devidamente revestidas com cerâmica branca. A casa inteira, aliás, recebeu um produto branco chamado selador e, na sequência, o imóvel foi inteiramente pintado de branco.
O piso interno, antes pavimentado apenas com tijolos, foi coberto com cerâmica. A frente e o lado externo ganharam calçadas com cerâmica antiderrapante. Portas e janelas (rústicas e com algumas avarias ocasionadas pelo tempo e as más condições da madeira), consegui trocá-las por outras de maçaranduba e receberam pintura azul. Há cerca de seis meses troquei as telhas por novas e contratei um profissional para fazer o forro em gesso.
Preciso destacar que essas transformações levaram, se não estou enganado, oito anos. Economizei tostão por tostão para adquirir o material e cobrir o custo da mão de obra. Tudo calculado, um passo de cada vez. Agora (triste realidade) não poderei usufruir desses tão perseguidos e batalhados benefícios.
É isto. Parece que cuidei mais deste imóvel do que da minha saúde. Exames preventivos ou periódicos, algo a que nunca dei muita importância, pois me sentia saudável, talvez tivessem detectado o tumor na fase inicial, com provável possibilidade de operar e de cura. É tarde para chorar o leite derramado.
Não posso nem devo me deixar abater nesse ensejo em que tenho uma visita mais que especial para receber nos próximos dias. Pressinto que ter conhecido Leopoldo Nunes renovou a minha vontade de continuar lutando. Sei que se trata de uma luta em vão, inglória, entrementes vou aproveitando ao máximo essa chance de conquistar uma pessoa que, talvez, venha colocar um pouco de luz e dulçor neste meu mundo sombrio e amargo.
Daqui até a próxima terça estarei com a casa em ordem. Farei, como eu disse há alguns minutos, a limpeza aos poucos. Minhas forças estão alquebradas e necessito repousar durante longos períodos. A fraqueza constante, a indisposição, além das dores no abdome, vão e voltam em um curto espaço de tempo.
Segue o problema da minha herança. Já contratei um plano funerário, a empresa me assegurou que eu serei enterrado no túmulo dos meus pais, no Cemitério São Sebastião, no entanto existe o detalhe da cobertura, também chamada de carência. O plano que contratei, com mensalidade de oitenta reais, prevê uma carência de longos quatro meses.
Receio morrer antes disso e ser enterrado em uma vala qualquer aberta pela Prefeitura, decerto em um caixão ordinário. Se por acaso o meu elo com Leopoldo se transformar em uma relação homoafetiva, então vou revelar a ele o meu drama em detalhes e, apesar de muito cedo, ele poderá se transformar em meu herdeiro. Não quero de jeito nenhum que esta casa fique às moscas. Temo que alguém (um oportunista, aproveitador) se aposse dela através de usucapião. Minha esperança é o jovem comerciário. Antes, porém, devo examinar o perfil, o caráter de Leopoldo.
Marcos Ferreira é escritor
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