domingo - 08/06/2025 - 15:32h

O Efeito Casulo – Dia 2

Por Marcos Ferreira

Imagem gerada com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

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Como mencionei no primeiro dia em que expus este projeto, considerando a possibilidade de que isto resulte em uma autobiografia, quem sabe se converta em um relato com o mínimo de valor artístico, julgo oportuno citar agora algumas passagens e trivialidades de minha meninice. Em especial o período que abrange a minha terceira infância em diante. Não tomem isso por vitimismo. Nessa quadra de minha vida, época de severas privações, de aguda escassez, várias foram as noites em que minha mãe me dava por jantar angu de massa de milho com açúcar cozido apenas na água, ou o simples café com farinha. Nesse tempo, ao contrário de hoje, empregada doméstica (salvo raras exceções) não ganhava um salário mínimo e não usufruía dos benefícios aos quais teria direito se fosse com carteira de trabalho assinada.

Minha mãe recebia meio salário e, às vezes, trazia sobras do almoço ou do jantar sobejado na casa dos patrões, casal que ela considerava dos mais benevolentes e caridosos. Boa parte do pouco dinheiro era destinado ao aluguel da casa, comprar pipas d’água e querosene para as lamparinas, pois não tínhamos água encanada e ainda menos luz elétrica. No mais das vezes, buscando sempre economizar em tudo, acendíamos uma única lamparina. Esta, a depender das necessidades, não raro era conduzida de um espaço para outro. O que sobrava para a compra de alimentos, então, atendia de maneira muito precária as nossas necessidades mais básicas.

Quando meu pai morreu, em julho de 1978, eu estava com cinco anos. Após seis anos, em agosto de 1984, perdi minha mãe; eu já havia completado onze. Lembro-me de que, durante o velório, os vizinhos mais próximos (de dedos cruzados perto do caixão) de vez em quando um ou outro comentava: “E agora? O que será desse menino? Pelo que sabemos, não tem familiares nesta cidade”, disse um homem de cabelos brancos, porém mais novo do que aparentava. “Não faço ideia, senhor Augusto. Acho, porém, que talvez seja mandado para um orfanato. Não sei dizer, na verdade, se há isso neste município”, ponderou um rapaz de óculos e cavanhaque. “Coitadinho! Sinto tanta pena dessa criança”, suspirou uma moça segurando um rosário.

Um vizinho, motorista de táxi, teve a presteza de cuidar da burocracia da liberação do corpo. Os custos do velório, sobretudo o caixão de madeira fosca e ordinária, foram cobertos pela prefeitura. Isso foi de grande importância naquela conjuntura. Os ex-patrões de minha mãe compareceram ao velório e sepultamento. Não tínhamos um cruzeiro sequer. O então prefeito, o senhor Dix-huit Rosado, que alguns costumavam chamar imerecidamente de oportunista, foi sensível; mandou até uma coroa funerária. Além disso, esteve no enterro, ocorrido no meio da tarde.

Eu não tinha, portanto, nenhum familiar. Exceto uma prima de meu pai, lavadeira de roupas que morava à Rua Pedro Velho, no bairro Santo Antônio. Essa prima, com quem minha mãe nutrira um bom relacionamento, foi à nossa casa durante o velório. Casa de taipa de três cômodos. Tão só a fachada era de tijolos e cal. A mulher disse que me levaria para morar com ela, pois minha mãe (de forma premonitória) lhe fizera esse pedido, se algo de ruim lhe acontecesse.

Tratava-se de uma figura com cerca de trinta e cinco anos, morena de olhos verdes e forte compleição. Depois do enterro, conforme me prometera, foi comigo pegar as minhas coisas, me ajudou a colocar meus poucos pertences e roupas em uma mala velha de papelão, e fomos embora. Também se encarregou de devolver as chaves da casa ao proprietário. A residência dela era em tijolos de adobe e paredes sem reboco. A sala e os dois quartos me pareceram pequenos, mas a cozinha era bem espaçosa e possuía um fogão a lenha. Devo destacar dois detalhes: a residência já contava com luz elétrica e água encanada.

O nome da mulher, de sorriso fácil e alvinitente, era Rita das Neves Procópio, de cabelos negros, compridos e lisos. Exibia uma destacada cicatriz acima do supercílio direito. Estimei que fosse coisa de há muitos anos, talvez até de quando criança, mas nunca ousei perguntar pela origem daquela marca que não chegava a ofuscar a simpatia daquele rosto ainda jovem e bonito. Chamavam-na apenas por Rita. Tinha um irmão uns cinco anos mais novo, pedreiro que se amasiou com uma mulher que extraiu do Lanterna Roxa, prostíbulo que funcionou no Nova Betânia.

O irmão de Rita se chamava Francisco Procópio. Morava nos Paredões com Esmeralda, a referida ex-prostituta que conheceu no bordel e por quem se apaixonou. A casa de Francisco também era própria e apresentava um amplo pedaço de chão na frente do terreno, espaço onde ele construiu uma estruturada padaria, ofício herdado dos falecidos pais. Esmeralda não demorou a se familiarizar com a produção de pães, bolos, bolachas, biscoitos e salgados.

O negócio prosperou, Francisco largou o trabalho de pedreiro e abraçou as demandas da panificadora. Em pouco mais de um ano ampliou o prédio. Além dos fregueses próximos, abastecia vários comércios do bairro. As entregas eram feitas com dois grandes balaios de palha acômodos nos bagageiros de bicicleta de carga. Afora isso, não deixava de entregar (diariamente) os seus produtos na casa da irmã. Fui beneficiado demais com a gentileza do irmão de Rita.

Minha época de fome acabara. Era algo muito comum a gente se alimentar três vezes ao dia, oportunidade rara por demais lá em casa. Rita contava com boa clientela e recebia um dinheiro razoável das lavagens de roupas para famílias abastadas. Cinco anos se passaram muito depressa. Até que aos 24 de fevereiro de 1989, uma quarta-feira, a três dias do meu aniversário, cheguei do colégio (a Escola Municipal Joaquim Felício de Moura) e encontrei Rita aos prantos sentada em uma cadeira rodeada por três mulheres. Eram vizinhas que eu conhecia de vista e cujos nomes não recordo. Havia ocorrido uma tragédia: o irmão de Rita fora assassinado.

Essa morte continua insolúvel. A polícia fez uma investigação rasa, classificou o sinistro como latrocínio, pôs uma pedra em cima do caso e nunca se soube a identidade do pistoleiro que tirou a vida de Francisco com um tiro no peito. O comerciante, segundo um freguês que se encontrava no local, tentou reagir ao assalto. Ainda segundo o circunstante, o bandido estava encapuzado. Há cerca de seis meses Francisco havia contratado um ajudante de nome Lauro Feitosa (moreno de vinte e poucos anos, alto e magro, cabelos crespos rebaixados) para auxiliar na entrega dos produtos em uma bicicleta com bagageiro atrás e na frente. Não tardou a circular o boato de que a viúva estaria se deitando com o rapaz. As más-línguas não perdoam ninguém. Esmeralda era honesta, continuou viúva e manteve a padaria funcionando.

Aos poucos Rita foi se conformando com a morte do irmão, e eu continuei contando com um teto, comida e roupa lavada. Semanas após completar dezoito anos, data esta em que Rita fez para mim um pequeno bolo de laranja para festejar o meu aniversário, houve uma noite em que ela entrou no meu quarto vestida em uma minúscula camisola vermelha. O cheiro da água-de-colônia preencheu o ambiente. Deitou-se por cima de mim e disse que eu já era um homem-feito e precisava conhecer uma mulher. Tirou a minha roupa, beijou minha boca, meu corpo todo, e deu um fim à minha virgindade. Rita foi a primeira e única mulher da minha vida.

No mês seguinte arrumei de novo as minhas coisas, coloquei tudo na mesma e surrada mala de papelão e fui morar na Casa do Estudante. Nova temporada de miséria. Faltava comida com frequência, contudo houve um lado positivo. Ali eu conheci o ruivinho Luís Peixoto, meu primeiro amor, que também se apaixonou por mim. Luís estudava com afinco para tentar o vestibular para o curso de administração. Tanto estudou que foi aprovado logo na sua primeira tentativa.

Um tempo depois, já na faculdade, Peixoto me trocou por outro sujeito. Entretanto eu me encontrava no lucro. Havia descoberto a mim mesmo e me sentia inteiramente livre para conhecer outros homens. Meu número de conquistas sempre foi pequeno, mas agora tinha convicção de uma coisa: que mulher não é para mim. Deixei a casa de Rita, todavia nossa amizade perdurou até quando ela viveu. Tinha então quarenta e sete anos quando perdeu a luta contra um câncer de mama.

Antes, como também não tinha filhos nem algum familiar que julgasse merecedor, ela me enviou um recado pelo Lauro Feitosa, o rapaz que trabalhava na padaria da viúva Esmeralda, e eu fui conversar com ela. Encontrava-se muito debilitada, a cabeça envolta por um lenço, pois perdera seus longos e bonitos cabelos em virtude da quimioterapia. Não fez rodeios, foi direto ao ponto como se aqueles fossem os seus últimos minutos de vida. Ainda resistiu durante três semanas. O motivo de haver me chamado foi para comunicar (não meramente pedir) que eu ficasse com a casa dela. Disse, enfaticamente, que não aceitava recusa. Ainda enfrentando os altos e baixos na Casa do Estudante, aceitei a oferta beijando-lhe as mãos com carinho.

Retornei para a residência de Rita das Neves Procópio e assisti a ela se despedindo deste mundo bem devagarinho. Em uma determinada manhã, por volta das seis horas, fui ao quarto ver como estava e ela tinha partido. Sim, morreu dormindo. Foi sepultada no mesmo túmulo de Francisco Procópio, seu querido irmão. Antes de morrer, claro, Rita já havia se antecipado, organizado os papéis do imóvel e passado a casa para o meu nome. É onde moro até hoje, à Rua Pedro Velho, 352, no Santo Antônio. Ironicamente, como uma trapaça do destino, também estou morrendo de câncer e preciso decidir em algum momento para quem deixarei esta casa.

Os valores relativos à minha rescisão trabalhista serão liberados muito em breve. No próximo mês vai pingar na minha conta o dinheiro relativo ao auxílio-doença, recurso que pleiteei junto à previdência social. Imagino que seja um valor entre mil e quatrocentos a mil e seiscentos reais. Nunca paguei plano de saúde e muito menos plano funerário, no entanto agora estou inclinado a contratar esse último serviço. É um gasto inevitável. O preço do caixão está pela hora da morte.

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 1

Marcos Ferreira e escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

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