Por Marcos Ferreira
Havia começado a me barbear. A barba crescida, o cabelo desgrenhado e precisando de corte são detalhes que pioram a minha autoestima. A tendência é que me sinta um tanto mais deprimido, além dos motivos que hoje possuo para não me mostrar de bem com a vida, feliz na minha solidão espontânea. Do outro lado do portão, para a minha curiosidade, a voz crescia, chamando alto.
Alguém pronunciava meu nome com vigor: “Fernando?!” “Tem alguém em casa?!” Apurei o ouvido, mas não reconheci a voz feminina. Claro que eu não iria atender. Ainda menos em se tratando de mulher. Não me sinto à vontade para abrir este domicílio sem aviso prévio. No geral, sendo franco, não gosto de visitas de surpresa. Hoje é tudo tão fácil; sem dificuldade. Logo o benquisto cidadão ou cidadã pode telefonar antes de aparecer, ou enviar uma mensagem pelo WhatsApp com antecedência, de forma que possamos avaliar a conveniência ou não da referida visita. Ou, além desse aspecto, até para saber se a gente não está em um outro lugar.
Como é bom, apesar do estado psicológico em que me encontro, receber amigos de nossa estima, carinho e admiração. Isso me faz um bem enorme. Entretanto, sem que me julguem mal, gosto de que esses amigos surjam em hora oportuna, de tal jeito que possam ser recebidos com os merecidos afagos. No mais das vezes nós tomamos um cafezinho, e o bate-papo é algo do melhor nível. Como na canção do Milton Nascimento, “amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves”. Percebo há meses que minha memória está por demais prejudicada. Isso acarreta consequências ruins, interfere de modo negativo no meu astral e bem-estar. Assim mesmo, levando em consideração o tom grave e merencório, preciso tomar cuidado para não descambar para a autopiedade. Não é por esse aspecto que desejo ser lembrado.
Seja como for, sem que tenha nada a ver com preferência por fulano ou sicrano, daqui por diante não estarei disponível como de hábito. Sinto neste instante uma profunda necessidade de ficar aqui sozinho comigo. Esse mal repentino me tirou a graça da confraternização, da confraria cheia de motejos saudáveis, abraços, contentamento mútuo como poucas vezes já experimentei em minha vida.
Continuavam insistindo em chamar pelo meu nome lá fora. Pensei de imediato que talvez fossem aquelas testemunhas de Jeová. Sim. Costumam aparecer nesse horário do fim da tarde para início da noite. Continuei tirando a barba sem me sentir perturbado. Daí a pouco umas leves batidas se sucedem no portão e meu nome outra vez foi pronunciado. Desta feita a voz era masculina. Esse último detalhe me reforçou a suspeita de que fossem realmente testemunhas de Jeová. Sim. Algumas dessas agradáveis “testemunhas” já me conhecem pelo nome. Embora eu não me ligue a nenhum tipo de religião, sempre recebi tais pessoas com respeito, indivíduos que (supõe-se) testemunharam algum milagre ou ação magnânima do Todo-Poderoso. Em diversas ocasiões, portanto, lhes dou a merecida atenção durante um determinado tempo.
Nunca as convidei a entrar. A conversa se desenrola no limiar do portão, na calçada. Estabeleço essa margem de intimidade e segurança. Neste ensejo, como já relatei, não quero atender ninguém. Após uns longos dias sem me barbear, o que não é raro, agora reunira forças, espantara a preguiça, e estava raspando a cara. Com a barba então crescida, uso o recurso da água quente; ponho uma vasilha para ferver, tampo a cuba da pia do banheiro, ponho um pouco de água fria (para quebrar a fervura) e assim o barbeador vai sendo usado e desentupindo mais facilmente.
Anteontem fui a um mercado aqui no bairro, localizado a uns duzentos ou trezentos metros de minha casa, e adquiri boa quantidade de gêneros alimentícios, provisões para que não necessite sair durante um tempo considerável. Comprei também alguns pães. Costumo comer um por vez ainda que adquiridos há quatro dias ou mais. Agora, como é fácil deduzir, estou a fim de usufruir da solidão, do silêncio e quietude deste modesto lar. Gosto de ficar só com os meus pensamentos.
Evito, na medida em que posso, trazer a avassaladora realidade do câncer à memória. Ao menos por algumas horas. Quem sabe até um dia inteirinho. Assim a tensão e a carga sobre os meus ombros diminuem em um grau significativo. Já me dei conta de que não pensar demais na doença amortece um bocado a angústia, o sofrimento; estabelece uma simbólica distância da iniludível presença da morte. Acho que isso tem funcionado um pouco. Sobra uma quantidade a mais de cabeça para me dedicar à feitura deste imprevisível projeto literário. Gozo dessa maneira da agradável sensação de me encontrar com meu rosto barbeado com o devido esmero.
As prováveis e simpáticas testemunhas de Jeová foram embora. Ou quaisquer outras pessoas que vieram me fazer uma visita sem informar previamente que viriam. Gosto, repito, de ser avisado com alguma antecedência. Não é sempre que estamos com a casa em ordem para receber os que prezamos. Sobretudo agora que me deram esse diagnóstico avassalador, esse ultimato com data estimada.
Um gigantesco sentimento de reclusão se apoderou de mim. Não há outro nome a ser dado a isso! Ficar só é a única coisa que ora ambiciono. Neste minuto não me sinto com ânimo e alto-astral para dividir, compartilhar um bom papo, uma conversa leve e descontraída. Não. Afora um alto número de afazeres domésticos, preciso arrumar tempo e equilíbrio para redigir esta espécie de diário. Minha mente, não nego, está apreensiva.
Cogito escrever outras reminiscências e episódios mais recentes, a exemplo das supostas testemunhas de Jeová que vieram há pouco, no entanto este é um relato amargo, sem o prazer que a escrita normalmente me proporcionava. Pela primeira vez, infelizmente, escrevo sem prazer, sem a satisfação de antes.
Estou, volto a dizer, com provisões e não precisarei sair tão cedo. A geladeira e os armários estão abastecidos. Neste momento usufruo da boa sensação da barba feita. Por enquanto, em virtude do desânimo, não me alongarei nestas notas de melancolia e autoanálise. Melhor (ao menos para não resvalar no surrado recurso de escrever sobre o que não se tem para escrever) é ficar por aqui. Amanhã, com os ânimos possivelmente renovados, decerto terei algo mais para contar.
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Marcos Ferreira e escritor
Caro amigo Marcos Ferreira, agradeço mais um capítulo de O Efeito Casulo. A saga da personagem Fernando é cheia de nuances que, digo mais uma vez, retratam um cotidiano real. A amargura do protagonista é equilibrada por sua noção dos problemas e vivências do dia a dia de um cidadão comum. Aguardo os próximos capítulos para ver o desenrolar das cenas.
P.s.: quero registrar que sinto falta da série ‘Depoimentos’, do Professor Ayala Gurgel. Ainda fico na expectativa de encontrar as transcrições literárias, não literais, apuradas na fictícia delegacia de Tugúrio.
Estou acompanhando o desenrolar do conto. Marcos Ferreira, como sempre, sabe envolver e encantar o leitor.
Um forte abraço, dileto amigo.
“A solidão é fera, a solidão devora…”, Fernando agora não tem tempo e não deseja compartilhar o pouco que lhe resta, com o que não o interessa. Em condições assim de ultimato, é você com você. Ninguém pode ajudar. Acredito que ele gostaria de mergulhar num sono sem acordar, contudo, o câncer não é bonzinho: mata com dor!🥲🥲
Olá querido xara !. Meio que aboleimado, ouso afirmar que somos um tanto quanto irmãos siameses. Primeiramente, estamos inconfundivelmente inseridos nono Modus Vivendi em que viveu o saidoso Raulzito Que se dane a tal pútrid elite política – falsa e falsiforme..Decifra-me ou te devoro.