domingo - 22/06/2025 - 07:30h

O Efeito Casulo – Dia 4

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa com uso de recurso de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com uso de recurso de Inteligência Artificial para o BCS

Estou há quatro dias sem colocar a cara fora. Não recebi nenhuma visita nesse intervalo e não sinto falta da presença de quem quer que seja. No geral, embora minha doença se coloque à espreita, acho que posso dizer que muitas coisas estão nos trilhos. Exceto por algumas dores abdominais que me dão umas pontadinhas de vez em quando. Há também um pouco de náusea e uma fadiga constante, um cansaço inarredável.

Creio que emagreci uns dez quilos. Minha última saída foi para ir ao mercado comprar alimentos, entre os quais eu trouxe uns pacotes de salsicha, cachaça da boa e Coca-Cola naquelas pequenas garrafas de vidro. Se meu fim está tão próximo, ao menos morrerei comendo e bebendo o que gosto. Que se danem, então, o tumor no meu pâncreas, as restrições médicas e os sermões do doutor Epitácio Coelho.

Engulo cinco comprimidos durante a manhã e cinco no começo da noite. Depois vou me preparando para tentar dormir. Perdi o prazer de ver filmes e séries nos streamings, sobretudo na Netflix e certos conteúdos no YouTube. Vou para a cama e, enquanto o sono não chega, dou uma olhada no telefone. Como se costuma dizer, tenho o mundo na palma da mão. Todo tipo de futricas e futilidades cabe na telinha desse aparelho dos seiscentos diabos, via Internet. Sabe-se de tudo nesta maquininha poliglota e portátil.

Mossoró está escancarada nas redes sociais. A bola da vez em todos os noticiários é a guerra entre Israel e o Irã. Lamento pelos inocentes de ambos os lados, a população civil, porém quero mais é que eles se explodam.

Falo isto no que se refere, obviamente, aos promotores, empresários dessas guerras estúpidas aparelhadas com megaestruturas bélicas que favorecem, sobretudo, os fabricantes de armas cada vez mais sofisticadas e letais. Toda essa máquina de destruição segue há décadas e décadas favorecendo o poderio das indústrias da morte, que faturam trilhões alimentando exércitos nos mais diversos lugares do globo terrestre com os seus armamentos mortíferos e de última geração.

Donald Trump (que, infelizmente, não estava sob a mira de um atirador de elite naquele episódio da bala que lhe raspou apenas uma das orelhas) deve estar tendo múltiplos orgasmos por conta desse conflito deplorável dos israelenses e iranianos. É possível que a besta norte-americana, sedenta de sangue, não demore muito para começar a bombardear o Irã. Vejo essa miríade absurda de notícias pelo celular, como destaquei, e sinto uma porção de furores me dominando o espírito. Revolta-me o fato de que em torno de seis meses estarei morto, e um percevejo social como Trump vai continuar exercitando toda a sua malignidade sobre a face da Terra.

Falta de sorte a nossa o fato daquele rapaz ter errado o seu alvo por míseros dois ou três centímetros. Do contrário, quem quiser que diga que também sou uma criatura maligna, a esta hora este planeta estaria com um crápula a menos. Sim. Há vezes em que perco o sono com esse tipo de fúria sem efeito.

Ninguém me diga que devo buscar me ater a coisas boas, alimentar pensamentos positivos. Vão se danar, porra! Estou quase com um pé na cova e a esta altura da pouca vida que ainda me resta não me sinto nada inclinado a deixar para seu fulano, cicrano ou beltrano memórias boazinhas, mensagens bem-comportadas, testemunhos de um indivíduo superior, corajoso perante a morte. Nem a pau! Como expus em alguma passagem deste meu relato, não vou dar esse gostinho à Moça da Foice. Quem decidirá o momento de deixar este mundo serei eu e ninguém mais.

Quase meia-noite. Bebo agora uma Coca-Cola bem geladinha e soltarei umas duas ou mais flatulências. Que se fodam, repito, o meu pâncreas e as orientações do doutor Epitácio Coelho, aquele oncologista filho de uma puta, rosado e careca. Ao menos poderia ter fingido algum sentimento de consternação ao me comunicar a metástase do meu câncer. Um cacete! Disse tudo com todas as letras e sem empatia alguma.

Torço que ele também morra o mais breve possível. E, para meu regozijo, acometido por um câncer de pâncreas. A Coca está perfeita. Não me importa que talvez prejudique meu sono, contribua para a insônia. Minhas noites têm sido longas.

O meu enfurecimento começa a borbulhar logo que anoitece e só aumenta nas horas seguintes. Por onde andará o michê do Ricardo Gurgel? Não o avisto há um bom tempo. A última vez foi em uma lanchonete e bar no Alto da Conceição. Estava à vontade, sem camisa, jogando sinuca e tragando o seu cigarrinho barato. Tipo realmente malandro, vagabundo, decerto bebendo à custa de alguém. Nunca quis saber de trabalhar. Afastei-me antes que ele desse por minha presença. Imagino agora que isso foi há uns oito ou nove meses. Tinha ido ali perto cortar o cabelo.

Hoje não faço mais esse tipo de coisa: percorrer boa parte da cidade tão só para cortar o cabelo e, às vezes, tirar a barba. Morro de preguiça de me barbear. Eu era cliente de há muitos anos do Juarez Praxedes. Ótimo cabeleireiro e bastante bonito. Mas esse nunca foi para o meu bico; tipo casado e religioso. Salão alugado no Beco das Frutas. Após uns cinco anos, conseguiu comprar o próprio prédio.

Passou-me o endereço e continuei cortando a cabeleira com ele, apesar da distância. Nessa época eu ainda tinha uma moto, que foi roubada no Centro desta cidade corrupta. Isso ocorreu há uns três anos. Nunca a polícia encontrou minha Pop 2014.

Admito que já escrevi desaforos demais. Que o leitor, digo isto respeitosamente, vá se foder se considerar que rabisquei apenas tolices, que não produzi nada de literariamente valioso. Talvez tenha razão, não sou o dono da verdade, entretanto quem manda nesta narrativa revoltada sou eu e acabou-se.

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 1

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 2

Leia também: O Efeito Casulo – Dia 3

Marcos Ferreira e escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Julio Rosado diz:

    Eita que Fernando, seu protagonista, como um Camusiano, como uma personagem forte, está exercendo seu direito à revolta. Apesar de sua frágil situação de saúde, ele tem muita energia e a usa denunciando a miséria de nosso tempo sem temer desagradar a ninguém. Sensacional.

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