domingo - 27/07/2025 - 08:04h

O Efeito Casulo – Dia 9

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Ontem, após refletir sobre meu findado e tóxico relacionamento com Ricardo Gurgel, indivíduo que nunca teve outro interesse no tocante a mim a não ser o da ambição financeira, hoje decidi convidá-lo para almoçar comigo. Isto porque fiquei sensibilizado quando ele me telefonou e disse estar na sarjeta; tornara-se um morador de rua. Por tudo o quanto já me aprontou, é lógico que aquele parasita não merecia a minha menor compaixão. Entretanto, por não conseguir vencer o fascínio que ainda sentia por ele, tive essa ideia de chamá-lo para almoçar e, sem rodeios, contar a história do meu câncer, dizer que tenho poucos meses de vida e expor meu intuito de torná-lo herdeiro desta casa e de tudo o mais; os últimos haveres que me restam.

Cedo, pouco antes das sete, cuidei de me barbear. A barba estava hirsuta, grisalha. Fiz isso com esmero, buscando melhorar a aparência com o propósito de exercer alguma atração sobre Ricardo. Com cuidado, pois não tenho habilidade com tesoura, aparei o excesso de cabelos a encobrir as minhas orelhas. Fui ao guarda-roupa, escolhi uma bermuda e uma camisa das mais novas (ou menos usadas), peças que eu poria depois de um banho e quando ele estivesse perto de chegar. Preparei-me assim, no capricho, para receber um cara decerto malcheiroso e barbudo.

Por volta das dez horas, então, pensando em ele contar com tempo hábil, de maneira que pudesse comparecer sem necessidade de se apressar demais, telefonei e não fui atendido. O celular tocou até a ligação ser direcionada para a caixa de mensagens. Decorridos uns trinta minutos, e não tendo ele retornado a minha chamada, liguei novamente. De novo não atendeu. Dei mais um tempo. Levei em conta alguns motivos pelos quais não estava me atendendo. Imaginei, entre outras situações, que se encontrava doente, ou o aparelho estivesse no silencioso e não notou meu contato. Considerei ainda a possibilidade de que houvesse ficado sem o telefone, vendido ou sido tomado por algum marginal. Assim mesmo telefonei pela terceira vez.

Entre novas suposições, falei de mim para comigo: está se fazendo de mouco, bancando o difícil, usando de astúcia, mas interessado em retornar o meu contato. Sim, estaria brincando de silêncio. Só que também sei brincar de silêncio, sei ignorar quando sou ignorado, não dar atenção a quem finge não me ver. Nesse ínterim, para não deixar tudo para o último instante, eu já tomara algumas providências em relação ao almoço. Requentara um feijão que preservara na geladeira há dois ou três dias, fiz arroz-agulha, preparei uma salada de frutas. Mantive-a sob refrigeração na esperança de o sacana dar um sinal de vida. Porém não deu. Estavam à espera duas latas de sardinha e uma de atum. Isto seria levado ao fogo no devido instante.

Bem-humorado, de temperamento agradável, simpático, Ricardo sempre foi um tipo bronco. Não quis saber de estudar, sequer avançou ao ensino médio, estacionando na sétima série do primeiro grau. Por simples ignorância, totalmente alheio a esse meu mundinho da literatura, da escrevinhação, jamais destinou o menor crédito para o fato de estar envolvido com um escritor, um homem de letras, um ficcionista de somenos importância, um literato de baixo relevo neste município.

Em momento algum demonstrou impulso, interesse em retirar, folhear um volume desta minha pequena estante de livros. Não. Livro é algo que em circunstância nenhuma exerceu curiosidade sobre ele. Ao longo de mais ou menos quinze meses sendo meu amante, não me recordo de que Ricardo Gurgel me fez uma única indagação a respeito de minha atividade enquanto escriba. Interessavam-lhe apenas as minguadas quantias, a pouca grana que eu dava a ele. Sobretudo no início do mês, ocasião em que eu recebia meu salário da loja de peças de automóveis.

Passava um pouco do meio-dia quando, vencido pela ansiedade, peguei o telefone e liguei pela quarta e última vez. Enfim, apesar da minha surpresa, a chamada foi atendida. Mas não foi a voz de Ricardo que ouvi na outra ponta da linha. Uma mulher, que depois me revelou ser irmã dele, falou um monossilábico “Alô”. Pronunciou as primeiras palavras de jeito embargado, com tristeza, pesar.

Daí a pouco, de jeito ainda mais solene, deu-me a terrível notícia: Ricardo Gurgel havia sido assassinado a altas horas com uma facada no peito por outro morador de rua, com o qual entrou em uma discussão por causa de pedaços de papelão, sobre os quais eles têm o hábito de dormir. Infelizmente, o bate-boca descambou para uma troca de socos e pontapés. Segundo outro sem-teto que também passava a noite ali, todos sobre a calçada do antigo Cine Pax, súbito o assassino puxou uma faca da cintura e cravou a lâmina no tórax do seu desafeto, e depressa se evadiu.

A irmã de Ricardo, cujo nome não disse nem eu perguntei, encerrou a conversa e desligou. Não liguei outra vez para colher nenhuma informação a mais. Por exemplo, se fosse do meu interesse, teria indagado a ela acerca do local do velório e sepultamento. A verdade, no entanto, é que não me importava.

Neste minuto, refeito do impacto da fatídica notícia, penso que a trágica morte de Ricardo Gurgel significou um alívio para mim. Exato! Como costumam dizer os católicos e os protestantes, foi um livramento. Porque, embora não desejasse nenhum mal para ele, senti que tirei um enorme peso das minhas costas, do meu espírito, espécie de algemas das quais talvez não me libertasse de outra maneira. Foi isso, livrei-me dessa paixão mórbida, doentia, que me dominava por absoluto. Torço que a alma dele (acaso exista vida além-túmulo) esteja em paz e num bom lugar.

Tendo assimilado o golpe, estando com os nervos equilibrados, como já mencionei, fui para a cozinha, aprontei o que faltava da comida e almocei o atum e a sardinha com um apetite que não mais encontrava desde que o doutor Epitácio Coelho me deu o diagnóstico do câncer. Além da doença, permanece o problema de encontrar um herdeiro para esta casa e outras coisas que possuo. Dois ou três amigos tentaram saber de mim através de mensagens e telefonemas, todavia não atendi a nenhum. Entendo que necessito contar a algum deles o que está se passando.

Estou sem a menor disposição para leituras. Todos os livros que eu pretendia ler, quiçá meia dúzia, súbito perderam a atratividade. Tenho prostituído meu intelecto com os assuntos varejistas das redes sociais e veículos de comunicação encontráveis na internet. Continuo sem frequentar o habitat dos literatos, dos intelectuais. Não faço ideia de quando terei novamente ânimo para receber alguém.

Preciso retomar o prazer de interagir com essas pessoas. Reaprender a desfrutar da saudável companhia desses que me têm estima e atenção. No fim da tarde, a propósito, enquanto mexia no celular, deparei-me com uma crônica do poeta mossoroense Júlio Rosado, publicada precisamente no dia 15 deste mês, no Jornal de Fato. Um trecho da referida crônica, cujo título é “O conhecimento também aflora nos intervalos”, representa um estímulo no que me diz respeito. Eis o fragmento: “O mestre aprende com o aluno tanto quanto um aluno aprende com outro, sem distinção, com respeito mútuo.” Pois é isso, a gente sempre pode aprender algo de onde e com quem menos esperamos, da mesma maneira como podemos ensinar algo de bom a outrem. Júlio Rosado, autor e leitor meritório, tem o que nos ensinar e também aprender. Ele reúne o talento e a humildade daqueles que vão longe nesta estrada da palavra escrita.

Encontro-me desta forma, reflexivo quanto propenso às interações sociais e humanas. Tenho consciência, apesar do meu estado de espírito de agora, que amanhã posso acordar (se acordar) com o pessimismo e mau humor que vêm dominando minha alma e meu coração. O penhasco em que estou produz uma barafunda de sentimentos em geral amargos e revoltados com Deus e o mundo.

Anteontem, após tomar meus remédios, entre os quais estão quetiapina e clonazepam, fui me deitar por volta das nove e meia. Quem disse que consegui dormir? Uma ova! Depois de muito rolar para um lado e outro, toquei no celular e a tela mostrava uma hora e cinquenta e cinco minutos da madrugada. A essa altura todo tipo de pensamentos já me havia sucedido. Especialmente pensamentos destrutivos. Tem sido assim há bastante tempo. Não raro me imagino cometendo toda natureza de violência, principalmente contra políticos de Mossoró, do Brasil e do mundo. Certos canalhas seriam eliminados com requintes de crueldade, devagarinho. Esquartejar ou amputar pernas e braços de pseudocidadãos de bem é coisa que almejo.

Essa libertinagem e promiscuidade com que são ofertados títulos de cidadania a vermes da política em âmbito nacional e até internacional, honrarias, comendas e medalhas disso e daquilo a uma récua de estrumes sociais, tudo isso me enche de fúria, de anseios de promover carnificinas a torto e a direito. De repente, por proposição de um sem-vergonha da Câmara desta urbe, aquele cancro (que ora usa tornozeleira eletrônica) se torna cidadão mossoroense. Filhos da puta!

Melhor ficar por aqui. Acho que novamente estou saindo dos trilhos. E isso é algo que, sendo meramente lúcido, só tem feito mal a mim mesmo. Se pudesse, no entanto, se Deus ou o Diabo me concedesse determinados poderes, aí podem ter completa certeza de que muitos prostitutos, ratazanas e sacripantas do meio político brasileiro e planetário sofreriam até a merda e o sangue escorrerem.

Marcos Ferreira é escritor

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 1

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 2

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 3

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 4

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 5

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 6

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 7

Leia também: O Efeito Casulo – Dia 8

Compartilhe:
Categoria(s): Conto/Romance

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.