Pedro deve ter uns dezenove anos. Magro, magérrimo, seu corpo ossudo sobra dentro da farda do supermercado. Há sinais claros de subnutrição. No rosto espinhudo um sorriso nervoso aparece e desaparece sem conexão com o que ele diz: sorri quando fala sério, fica sério quando parece brincar com a própria desdita. Está noivo. Quer casar logo, mas não pode. Pergunto-lhe se estuda. “Não tenho tempo”, diz. “Pego aqui às oito da manhã e só largo lá pras oito da noite, e, aí, tenho que pegar ônibus pra Zona Norte, do outro lado de Natal, é quase hora e meia de viagem.” “Chego cansado, só penso em dormir, nem a noiva eu vejo.”
“Está comprando as coisas para o casamento?”, pergunto. “Nada!” “A gente recebe um cartão do supermercado quando entra no trabalho e vai comprando, comprando, lá pra casa mesmo, pros meus pais, e no final do mês quase não recebe nada em dinheiro.” Faz uma pausa e continua: “mas minha noiva tá procurando emprego”. “Ela estuda?”, continuo. “Terminou o segundo grau, mas não foi em frente por que tem que ajudar em casa.” Pedro segue arrumando as mercadorias nas sacolas enquanto conversa comigo. Diz para mim que folga uma vez por semana, “às vezes”, já que quase sempre aparece um trabalho extra na empresa. E afirma enfático, que vai voltar a estudar, “é só as coisas melhorarem.”
Pedro não sabe, mas sua turma tende a aumentar cada dia mais. A lógica do capital é essa. E anda cada dia mais sofisticada: nos círculos íntimos do Poder o Estado é tratado como “business”. Os termos usados pelos gestores públicos pertencem ao mais fino dialeto econômico/financeiro: é “destino econômico” para cá, “benefícios fiscais” para lá, “mercado interno” ali, “agenda de desenvolvimento” acolá. É preciso “vender” o Estado, dizem eles. É preciso “captar” investidores, entoam.
Pura lógica do capital que amealhando corações e mentes desprevenidos ou ávidos induz sua entrega à tarefa menos árdua e mais prazerosa de semear facilidades, mão-de-obra barata e grata e outros mimos ao custo óbvio de almoços, jantares, e viagens, para os predadores de fora, loucos para espoliar mais uma caterva de ingênuos sob a batuta firme e alienada da administração pública.
Vão se multiplicar, leio na imprensa, graças às injunções dos sábios conselheiros da Corte ante os maestros da economia brasileira, as empresas no Rio G. do Norte. Elas vêm aí: lépidas e fagueiras, sem pagarem impostos, sem darem qualquer contrapartida para o resgate do atraso social, “mas gerando riqueza e empregos”, segundo a propaganda infernal dos publicitários. Riqueza para os ricos e empregos-farsas para os Pedros da vida, as Taís da vida – garçonete noite-e-dia em um “fast-food” desses que pululam por aí, a esconder rápido, um dia desses, suas lágrimas derramadas pelo filho recém-nascido e doente deixado em mãos estranhas enquanto o emprego é defendido com unhas e dentes; os Josés da vida – empregado de uma indústria “captada” no Sul maravilha, imposto “zero”, contribuição nenhuma, – quase um escravo, tal sua jornada de trabalho.
E tudo continuará como sempre foi, desde que o mundo é mundo, por que essa história se repete há muito tempo. Quem duvidar da história de Pedro, Taís, José, procure a Justiça do Trabalho. Leia as sentenças dadas pelos juízes de primeira instância. Delicie-se com a expropriação da força de trabalho da nossa classe média mais baixa. Com a história daqueles que sustentam este arcabouço todo reproduzindo, cada vez mais sofisticadamente, o modelo de exclusão social no qual vivemos.
Projete, a partir daí, o futuro de nossa juventude cinzenta, aquela que se contrapõe à “juventude dourada” – os filhos das elites. E esqueça os excluídos: esses sequer constam corretamente nas nossas estatísticas governamentais, a não ser muito por cima, como quando imaginamos quanto à economia marginal, aquela à margem do Governo, produz dia-a-dia.
Enquanto isso, enquanto os Estados são “vendidos” lá fora, no Sul maravilha, no “estrangeiro”, conseqüência de um surto atrasado e colonial de um capitalismo ingênuo e predatório – que o diga, por exemplo, para ficarmos na área governamental, aquilo que a Petrobrás faz com o Rio Grande do Norte ao arrancar nossa matéria prima deixando quase nada em troca – Pedro, Taís, e José não sabem, mas a cada momento aumenta o custo social que eles têm que pagar para sobreviverem nesta selva de pedra: não há políticas públicas, não há projetos sociais, não há ações governamentais planejadas, não há governo, enfim, portanto a eles e a seus filhos estão destinadas escolas decrépitas e sem professores; postos de saúde sem médicos e sem remédios; bairros e ruas com postos policiais abandonados, viaturas policiais inapropriadas, quebradas e sem gasolina; e servidores públicos trabalhando como se estivessem em pleno século XIX. E como os Pedros, Taíses e Josés vicejam na lama obscura da alienação, terminam achando que plano de saúde, escola particular, automóvel, lazer, cerca elétrica, carro blindado, segurança privada é, pela ordem natural das coisas, algo ao qual somente os ricos têm acesso. Seguem em frente, portanto, a venderem seu suor, seu sangue, sua vida, a preço vil.
Honório de Medeiros é professor, advogado e ex-secretário de Recursos Humanos do RN
Prezado Carlos Santos. Parabenizo o Blog por postar e ao amigo Honório por produzir um ótimo artigo. Abraços. Eriberto
Amigo Chico Honório você fala com grande propriedade dos ‘Pedros’, ‘Tais’ e ‘Josés’ de Natal. Agora, imagine os ‘Pedros’, ‘Tais’ e ‘Josés’ do interior. Veja alguns dados: de cada 100 alunos que terminam o ensino médio na capital, 35 acessam o ensino superior. Agora os dados do interior: tem Região do Estado que para cada 100 alunos que terminam o ensino médio, apenas 2 acessam o ensino superior. Além da dificuldade de acesso a educação superior tem ainda outro agravante: a falta de oportunidades para acessar o mercado de trabalho. É triste, mas é verdade.
Entendi que o foco do seu artigo não quer se reduzir aos empregados do comércio, podendo ter até quem sabe sido usado um personagem fictício para desenvolver seu sábio raciocínio.
No entanto, seu personagem me comoveu, pois sou advogado trabalhista e atuo em várias campanhas salariais como defensor dos trabalhadores na região de Mossoró/RN e sou testemunha da exploração dos empregados no comércio deste Estado, principalmente os da área supermercadista. Trabalhadores esses que normalmente levantam as portas das lojas por volta das sete da manhã e às vinte, vinte e uma ou vinte e duas horas, os vemos baixando as mesmas portas. Isso sem direito a domingos ou feriados, pois os tempos modernos manadam que se vendam muito, a qualuer hora do dia ou da noite, em domingos, dias santos e feriados…
Esquecem, no entanto, os mais desavisados que nesta relação perniciosa, está de um lado o capital querendo vender e vender sempre mais e na outra ponta um ser humano que perdeu a referência familiar, das amizades, do lazer, da missa dominical, e muitas outras coisas foram perdidas porque a população quer comprar qualquer hora do dia ou da noite e em qualquer dia da semana. Reflitamos sobre isso…