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domingo - 11/04/2021 - 09:00h

O feitiço das palavras

Por Marcos Ferreira

Há muitas vezes, ao menos comigo isto acontece, em que já estamos deitados, recolhidos às brumas do sono, quando elas nos sacodem, puxam os lençóis, o travesseiro, batem os pés, formigam em nossa cabeça e exigem expediente extra. Meio sonâmbulos, acendemos a luz (ou apenas recorremos ao bloquinho de notas do celular) e rabiscamos qualquer coisa, um mínimo registro para darmos andamento ao estalo inspirativo no dia seguinte, não raro sem a fecundidade e proveito do primeiro instante.

Porque escrever, minhas senhoras e meus senhores, salvo raras exceções, é, acreditem, um exercício de absoluta entrega e renúncia.letras, palavras, teclas, textos, nomes, datilografia, teclas, tecladoPalavras têm disso: encanto, magia, feitiço. A mim (um sapateiro da literatura) elas sempre enfeitiçaram, arrebataram, fascinaram. Porque palavras, entre outras importâncias e qualidades, têm cheiro, cores, sabor, compleição, rutilância, força, poder.

Careço amiúde conhecê-las, degustá-las nesse imensurável manjar que é a língua portuguesa do Brasil, de Portugal e demais países lusófonos. Digo mais, minhas senhoras e meus senhores: sou um tipo irrecuperável de viciado em palavras, refém espontâneo de suas ordens e caprichos, caminhos e perigos.

Deixamos a caverna há três milhões e quatrocentos mil anos e desde então o advento da linguagem, da escrita, tem sido a nossa conquista mais relevante e inigualável. Palavras são o maior patrimônio da humanidade. Humanidade esta que, infelizmente, nem sempre é tão humana como deveria. Entretanto, bem ou mal, o verbo nos distingue, seleciona, classifica, excluiu ou inclui. Porque palavras são, também, consenso e discórdia, união e diáspora, cárcere e liberdade.

Palavras são isso e aquilo; o ser e o não ser de William Shakespeare; a dialética incomparável de Machado; a pena flamejante de Dostoiévski; a precisão vocabular de Graciliano; os sonetos impecáveis de Florbela Espanca; a verve indômita de Clarice Lispector; o silêncio eloquente dos omissos.

Busco as palavras como meus pulmões exigem oxigênio. Careço senti-las a todo minuto, hauri-las, criar afinidade, apreendê-las nesta instância da vida em que me sei menos manipulador que manipulado, menos protagonista que figurante, simples porta-voz, menino de recados.

Sou-lhes obscuro garimpeiro, bateador. Busco-as noite e dia, sem temor nem rodeios. Mas não de maneira a averiguar nos dicionários o lato sentido de um determinado vocábulo ou sentença. Não assim. Ambiciono das palavras a condição de expressar-me, se possível, com arte.

Não é nada fácil, senhoras e senhores, porém a dificuldade não reduz o meu anseio de pavimentar a minha trajetória e história com um pouco de arte escrita. Empresa difícil e por vezes inglória, eu sei. O escritor português Latino Coelho, em A Oração da Coroa, pontuou sobre este aspecto: “De todas as artes a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil, é sem dúvida a arte da palavra”.

Imaginem um deus literário como Machado de Assis (1839-1908) sem a literatura, sem o feitiço das palavras, que ele manejava com mestria invulgar. Imaginem o bruxo do Cosme Velho (sua carinhosa antonomásia) sem o condão das letras. Imaginaram? Pois bem.

Calculo que estaria em sérios apuros, isto no tocante à época e sociedade a que pertenceu. Homem de origem humílima, filho de um descendente de escravos alforriados e de uma lavadeira portuguesa, que atropelou toda espécie de preconceitos daquele Brasil de antanho graças ao poder irresistível da sua inteligência e da sua escrita. Viva Joaquim Maria Machado de Assis!

“Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução”, escreveu Machado no conto “Primas de Sapucaia!”, do livro Histórias sem Data, de 1884. Vivesse nos tempos de hoje, detentor da extraordinária obra que produziu, decerto já teríamos um Nobel de literatura, cuja primeira edição foi conquistada pelo francês Sully Prudhomme em 1901. Prudhomme faleceu seis anos depois (1907), aos sessenta e oito anos.

Nem todos nós, os miúdos, podemos gozar da fortuna de ser um Graciliano Ramos, um Dostoiévski, uma Carolina Maria de Jesus, uma Conceição Evaristo ou um Machado de Assis. Mas, não fossem os pequenos, os escribas de inferior estatura artística, que tédio seria a literatura. Não há Nobel para todo mundo. Tudo tem sua finalidade, sua época e relevo. Até nossos menores dedos são essenciais. Aqui, a horas mortas, entre o caos da pandemia e o escárnio do Genocida, permito-me fazer uso por escrito do meu idioma enquanto homem de letras.

Fernando Pessoa falou certa vez (escreveu, na verdade) que ser poeta nunca foi a sua ambição, mas apenas a sua maneira de estar sozinho. Para mim, por maior que seja a solidão, ler e escrever é uma forma de não me sentir só. Quem lê e quem escreve (convém que seja nessa ordem) nunca está de fato sozinho. Escrevo, pois, com ou sem talento. E submeto ao leitor menos exigente as minhas páginas de baixo quilate e voltagem literária, dignas, quiçá, de alguma atenção ou piedade, como nesta primeira estrofe de um soneto de Bocage, outro português:

“Incultas produções da mocidade

Exponho a vossos olhos, ó leitores;

Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;

Que elas buscam piedade, e não louvores”.

Como percebem, cheguei até aqui (refiro-me a esta crônica frankensteiniana) à custa de retalhos, pedaços de uma e outra coisa. Ou seja, enrolando o tempo e espaço, fazendo uso de uma espécie de bromato de potássio verbal, recurso para inchar o texto e fazer parecer que o pão da véspera é quente e fresquinho. Porque alguns cronistas, diante da escassez de assunto, costumam enfeitar o pavão. Mero artifício, figura de linguagem, algo de que nosso idioma é riquíssimo.

Dito isto, minhas senhoras e meus senhores, dou a cara à tapa, o braço à seringa, a mão à palmatória. Porque até agora não fiz outra coisa exceto lhes roubar preciosos minutos. Da próxima vez, prometo que vou tentar, apresentarei páginas que lhes valham o tempo investido. Sobretudo o meu próprio tempo, posto que não desejo notabilizar-me como farsante literário, um vigarista menor.

Por último, meus caros, penso neste conselho do Benjamin Franklin: “Se não queres perder-te no esquecimento tão cedo como chega a morte, escreve coisas dignas de ler-se, ou faz coisas dignas de escrever-se”.

Antes que chegue a Moça da Foice.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica / Cultura

Comentários

  1. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    OBRIGADO PELO FEITIÇO DAS PALAVRAS, PELO ENLEVO DOS SEUS SIGNIFICADOS E SIGNIFICANTES NA MANHA DESSE DOMINGO, 11 DE ABRIL DO ANO DE 2021…. CARO MARCOS FERREIRA.!

    Seu brinde em forma de artigo, imediatamente nos remete à língua, música e letra do genial CAETANO VELOSO…que também nos presenteia com um instigante invólucro da Flor do Lácio em forma de música, mormente quando lindamente nos diz…

    Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luiz de Camões
    Gosto de ser e de estar
    E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
    E uma profusão de paródias…
    Que encurtem dores
    E furtem cores como camaleões
    Gosto do pessoa na pessoa
    Da rosa no Rosa
    E sei que a poesia esta para a prosa
    Assim como o amor está para a amizade
    E quem há de negar que esta lhe é superior?
    E deixem os Portugais morrerem a mingua
    Minha pátria é minha língua
    Fala mangueira! Fala!

    (…) omissis……………………………………………………………………………………………………..

    E aí vai o o caminhar dessa verdadeira obra prima do cancioneiro… digamos da MPB…quem quiser aprender, apreender e se deliciar lendo e ouvindo essa expressão genuina de brasilidade, basta entrar/abrir as “páginas”do atual “dicionário aurélio” ..mais conhecido como GOOGLE…!!!

    Outrossim, nestes tempos da PANDEMIA COVID- 19, de tanta dor e perda, derivadas em grande parte da irresponsabilidade de atos, ações e omissões de uns poucos que nos desgovernam no atual momento histórico por que passamos, vivemos e vivenciamos tragédia de exponencial dimensão planetária.

    Peça vênia e faço minhas, as palavras da telúrica e magistral CORA CORALINA, quando escreve e nos ensina:

    ” SE AGENTE CRESCE COM OS GOLPES DUROS DA VIDA, TAMBÉM PODEMOS CRESCER COM OS TOQUES SUAVES DA ALMA…!”

    Um baraço
    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  2. Odemirton Filho diz:

    O amigo escreve com talento, com a alma. Se entrega às palavras e nos entrega, para variar, um texto
    primoroso.

    Como gosto sempre de ressaltar: Marcos Ferreira nunca decepciona. Nunquinha.

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