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domingo - 29/09/2013 - 08:39h

O homem que se evadiu

Por Dinah Silveira de Queiroz

Ele costumava olhar a cidade como quem passa de trem, e não pode possuir a paisagem. Que belas mulheres, que admiráveis lugares de diversões, e que restaurantes… e que bebidas!

Feliz era o turista que chupava a cidade por um canudo.

Mas ele — ele era o seu escravo! De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Quando chegava o dia de folga — a mulher, que estava dia a dia ficando mais feia e ácida, se agarrava com ele. Ela era quem escolhia o cinema, ou a visita…

Numa segunda-feira, em que o homem sentia a vida como um nó na garganta, um companheiro de trabalho deu certa notícia:

– “Sabe? O chefe vai mandar-me a Buenos Aires por quinze dias!”

– “Mas você é um homem de sorte! Eu que sempre quis conhecer aquela terra!”

A viagem do colega a Buenos Aires deu ao nosso conhecido um complexo: o da liberdade! A inveja nele doía. E então, pediu ao felizardo:

– “Tive uma ideia. Vou tomar férias. E como não tenho dinheiro para viajar… fico por aqui mesmo. Mas quero que minha mulher pense que estou fora. Meu amigo — eu vou é me acabar! Vou-me divertir para o resto da minha vida. Você vai para Buenos Aires, mas a gente rica de lá vem passear aqui. Quer dizer que isto é bom. O de que se precisa é liberdade, para gozar o Rio.”

Como o amigo concordasse com sua fantasia — o carioca que queria gozar o Rio como turista disse à mulher:

— “Meu bem, tenho uma novidade para contar. O chefe me despachou para Buenos Aires por duas semanas! Vou ter muitas saudades de você. Nós que não nos separamos nunca!”

E ele não quis que a mulher o acompanhasse ao Aeroporto:

— ” Vou ficar muito emocionado.”

Nesse dia em que deveria embarcar, ele madrugou e foi levar o amigo, entregando-lhe meia dúzia de telegramas que deveria passar… E caiu na orgia.

À noite, depois de um dia de companhia alegre, de passeio de lancha, de teatro ao lado de uma loira, à noite, lá pelas onze horas, uns conhecidos que chegavam a uma boate deram com nosso personagem num pileque terrível. Daí a meia hora estava dormindo sobre a mesa: ninguém sabia que ele tomara um quarto em hotel… nem conhecia sua trama inventada.

Os amigos, penalizados, o puseram num automóvel e sabendo do seu endereço, o deixaram em casa, onde a mulher o recebeu com espanto, que se transformou em cólera tremenda.

Quando, de manhãzinha, o homem acordou em seu quarto — mediu toda a extensão da sua … desgraça:

— ” Meu bem, os amigos, lá no aeroporto… O avião atrasara quatro horas… me deram uma festinha de despedida… e eu perdi a hora… Mas não foi minha culpa. Você me perdoe. Isso aconteceu, porque eu não tenho hábito dessas coisas… Mas eu me arranjarei com o chefe… Até foi bom. Ele manda outro funcionário, e eu não me separo mais da minha mulherzinha.”

A senhora estava furiosa. Foi preciso muito juramento e muita declaração de amor para que amansasse um pouquinho. À tarde, quando estava já querendo fazer as pazes tocou a campainha da porta. Era um telegrama. Ela o abriu:

— ” Viagem ótima. Morrendo saudades querida mulherzinha.”

Foi a tempestade. A

senhora arrumou a bagagem. Ia para a casa do pai, pois não era uma abandonada. O marido se arrojou ao chão, inventou histórias, disse que se mataria. Ela ficou.

Mas quando se recolhiam ao quarto de pazes feitas, chegou novo telegrama:

— ” Buenos Aires sem ti não vale nada.”

E os quinze dias do homem que quis quebrar sua rotina foram tremendos. Mesmo porque o amigo que levara os telegramas mudara de hotel, em Buenos Aires, e se desincumbiu religiosamente da sua missão.

O último despacho que mandou foi assim:

— ” Volto amanhã teus braços.”

E estava gentilmente assinado: ” Maridinho”.

Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982) – Romancista, contista e cronista paulistana

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Categoria(s): Crônica / Grandes Autores e Pensadores

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