Por Paula Adamo Idoeta (BBC News Brasil)
Quando o filho pequeno de Maryam Abdullah acidentalmente quebra algum de seus brinquedos, ele costuma dizer que a culpa do pequeno acidente é de “um rato”.
Abdullah, que é psicóloga e diretora do Programa de Parentalidade do Centro da Ciência para o Bem Maior na Universidade de Berkeley (EUA), usa o exemplo caseiro para mostrar que a mentira é algo comum e natural no comportamento das crianças, desde cedo.
Nas menores, existe ainda uma dificuldade em descrever ou recordar episódios com exatidão. Logo elas descobrem que nós, adultos, também usamos a mentira para cumprir expectativas sociais (não ofender alguém, por exemplo) ou para escapar de crÃticas – e aprendem a repetir esse comportamento.
“A maioria delas vai mentir em algum momento”, diz Abdullah à BBC News Brasil, citando uma pesquisa da Universidade McGill (Canadá) de 2016 que aponta que “contar mentiras é um comportamento social importante, que até mesmo crianças pequenas aprendem a usar em interações sociais do dia a dia. Estudos mostram que crianças pequenas mentem para evitar que suas transgressões sejam descobertas, e isso aumenta durante os anos pré-escolares e escolares”.
Dito isso, é importante valorizar a honestidade e ensinar as crianças a não mentir: “ensinar a honestidade, mesmo quando ela tem consequências adversas, é essencial para as crianças fortalecerem seus laços com sua famÃlia, professores e amigos. (…) Honestidade é a base da confiança e algo crucial para relações saudáveis e comunidades fortes”, diz o Programa de Parentalidade de Berkeley, que tem divulgado ferramentas com fundamento cientÃfico para ajudar pais e cuidadores a cultivar habilidades socioemocionais valorosas em crianças, como compaixão, generosidade, senso de propósito e, é claro, honestidade.
Uma dessas ferramentas diz respeito a como elogiamos as crianças, e outra, a como nós mesmos lidamos com a mentira. Veja a seguir:
Elogiar o processo, e não o resultado
Estudos reunidos pelo centro de Berkeley apontam que elogiar as crianças por habilidades e caracterÃsticas inatas, com frases do tipo “como você é inteligente!” ou “como você é esperta!”, pode, inadvertidamente, incentivar as crianças a mentir ou a trapacear.
Um desses estudos foi publicado no ano retrasado por universidades da China, dos EUA e do Canadá, analisando o comportamento de 300 crianças chinesas de 3 a 5 anos, enquanto participavam, individualmente, de um jogo de adivinhação com cartas.
Algumas dessas crianças foram elogiadas por sua habilidade (“você é tão esperta”); outras, por seu desempenho no jogo (“você se saiu bem desta vez”) e outras não recebiam qualquer elogio. As crianças eram orientadas a não espiar as cartas, mas tinham a oportunidade de fazê-lo quando a assistente da pesquisa saÃa da sala – sem saber, porém, que estavam sendo filmadas.
“Os resultados mostram que as crianças que foram elogiadas por sua habilidade tinham maior probabilidade de trapacear do que as que foram elogiadas por sua performance ou mesmo as que não foram elogiadas”, escrevem os pesquisadores.
“Pode ser para sustentar o traço positivo (pelo qual foram elogiadas) ou sua reputação de serem espertas. (…) As descobertas demonstram que o elogio pela habilidade pode estimular a trapaça em crianças pequenas.”
Para Maryam Abdullah, “muitos pais acham que esse é um tipo de elogio positivo, mas ele acaba inibindo a honestidade, porque as crianças ficam tentando manter sua reputação (de esperteza) ou porque não querem desapontar pais e professores (ao errar)”.
É melhor, então, elogiar o processo e o esforço, diz a pesquisadora: “Que legal que você se esforçou”, ou “que interessante que você tenha usado essa estratégia para resolver esse problema”. A percepção dos cientistas é de que esse tipo de elogio não apenas fomenta a honestidade, como estimula a criança a se esforçar ainda mais no futuro.
Segundo esse raciocÃnio, elogios vagos, como “muito bem!”, acrescentam pouco ao repertório infantil. “É melhor dizer algo mais especÃfico à situação – será que a criança perseverou diante de uma frustração? Ajudou alguém ou levou os sentimentos de alguém em consideração ao agir? Quanto mais claros nós formos sobre o que estamos valorizando no comportamento infantil, mais ela entenderá”, diz Abdullah à reportagem.
A reação dos adultos à mentira
Outra forma de encorajar a honestidade tem a ver com a forma como reagimos à mentira das crianças, prossegue ela.
“Podemos focar na coragem da criança nos momentos em que ela age com honestidade”, afirma a pesquisadora. “Começar dizendo ‘obrigada por me contar a verdade’ envia um sinal positivo à criança e fomenta a honestidade.” A ideia é de que é mais eficiente elogiar a verdade do que punir a mentira.
Ela menciona mais um estudo, realizado com 200 crianças canadenses de 5 a 8 anos, que também analisava seu comportamento em um jogo de adivinhação. A diferença desse estudo é que, antes do jogo, as crianças viam os próprios pesquisadores interagirem entre si.
Basicamente, as crianças testemunhavam um pesquisador quebrar os óculos do outro pesquisador sem querer (era uma simulação, mas elas não sabiam disso). DaÃ, cada grupo de crianças era submetido a um entre quatro cenários:
– O pesquisador confessava ter quebrado os óculos do colega, mas a reação deste era positiva: “obrigado por me contar. Está tudo bem, acho que dá para consertar”.
– O pesquisador confessava, mas a resposta do colega era negativa: “Como você pôde ter feito isso? Vai ter que me comprar um novo!”
– O pesquisador não confessava e dizia não saber onde os óculos estavam, mas não era punido por isso. “Vou continuar procurando, obrigado”, dizia o colega.
– O pesquisador não confessava, mas sofria consequências: “não acredito em você! Vai ter que me comprar óculos novos!”, dizia o colega.
O resultado: as crianças que testemunharam a experiência positiva após ter contado a verdade ou a experiência negativa após ter mentido tinham maior probabilidade de contar a verdade, em relação a um grupo de controle.
Já as que viram a experiência negativa após a verdade ou a positiva após a mentira acabavam mentindo mais no jogo subsequente.
“As crianças provavelmente usaram essa informação (social) em sua análise do custo x benefÃcio entre mentir ou contar a verdade a respeito de suas próprias transgressões”, diz a pesquisa.
Dicas finais
Refletir sobre a honestidade dentro de casa – por exemplo, lendo histórias sobre personagens que cometiam erros e mentiras e os desdobramentos disso – também ajuda a tornar os efeitos da mentira e da trapaça mais palpáveis para as crianças.
O programa de Parentalidade de Berkeley tem outras duas dicas finais para pais que querem estimular a honestidade em crianças. A primeira é fazer acordos verbais detalhados com as crianças. Por exemplo, se você quer que seu filho lave a louça, mas ele está assistindo TV, a sugestão é em vez de aceitar apenas que ele diga “vou lavar a louça depois”, fazer com que ele se comprometa verbalmente com algo como “vou colocar o alarme para 30 minutos e daà vou lavar a louça”. Isso torna mais concreta a expectativa de o que é esperado dele.
A segunda é conter o impulso de oferecer recompensas (doces ou presentes, por exemplo) em troca de comportamentos. A recompensa vai mudar a motivação da criança – de completar um desafio para ganhar o doce – e aumentar a probabilidade de que ela recorra a trapaças.
E, embora contar mentiras seja parte natural do desenvolvimento infantil, ela pode passar dos limites?
Se a mentira estiver associada a outros comportamentos mais agressivos ou se for muito frequente, Maryam Abdullah sugere que se busque um apoio profissional, que ajude a identificar o que no ambiente ou nas relações pode estar impedindo a criança de contar a verdade.
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Sobre quebrar óculos, aconteceu comigo. Meu pai me pediu para levar os óculos dele para outro cômodo da casa. Em seguida, saiu. Durante a minha incumbência, deixei-os cair. Agoniada, limpei os caquinhos do chão e do aro da lente que se estilhaçara. Como uma das lentes permanecera Ãntegra, achei que ele não fosse notar. Tinha por volta de quatro ou cinco anos. No entanto, durante o decorrer do dia, aquilo começou a me afligir. Precisava contar. O peso era grande. Claro, não havia celular, mas, à tardinha, ele ligou para minha mãe. Pedi o telefone e disse: paizinho tenho uma boa e uma má notÃcia para lhe dar: quebrei os seus óculos, é a má. A boa é que você só precisa comprar outros com uma lente porque a esquerda está inteirinha. Ele respondeu: “também tenho uma boa e uma má notÃcia para você: parabéns por sua sinceridade, é importante falar a verdade. Vou providenciar os óculos novos. Essa é a boa. A má é que não sou caolho. Preciso das duas lentes.” E deu a risada que me confortou.