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domingo - 27/03/2022 - 09:00h

O jornaleiro

Por Inácio Augusto de Almeida 

Todos os dias o menino passava com uma ruma de jornais em frente a um quartel no centro de Belém na Praça da República.

Ali parava para apanhar algumas mangas e descansar do peso dos jornais. jornaleiro

Ficava chupando mangas sentado no chão embaixo de uma mangueira. Nem das belas estátuas se dava conta.

Aquele garoto despertou a curiosidade de um militar. E por curiosidade, quase sempre o militar atravessava a rua e ficava a conversar com o jornaleiro que mal conseguia falar, tal a maneira como comia as mangas.

O garoto era o tipo amazônico com ascendência indígena sem nenhuma miscigenação. Já o militar, um nordestino típico.

Aos poucos o militar ficou sabendo que o menino estudava e morava num bairro da periferia onde os alagamentos eram constantes. A casa era de madeira; ao invés de uma rua, tábuas servindo de ponte no alagado onde tinham feito o casebre.

Isto lembrava ao militar uma casinha de palha…

Naquele dia observou muitos jornais e resolveu perguntar quantos o menino já vendera naquela manhã que prometia ser chuvosa.

Sem levantar os olhos, sem nada falar, o jornaleiro fez o V da vitória.

Com a chuva ameaçando cair, muito certamente não venderia mais nenhum jornal naquele dia

– Você quer vender todos estes jornais bem ligeirinho?

O jornaleiro deu um pulo, levantou-se e balançou a cabeça.

– Faça o seguinte. Limpe as mãos, pegue os jornais e vá para a esquina. De lá venha gritando AUMENTO DOS MILITARES, AUMENTO DOS MILITARES.

Quando o menino saiu para a esquina o militar atravessou a rua e ficou no portão de entrada do quartel.

Logo começou a ouvir o grito do jornaleiro anunciando o aumento dos militares.

Olhou para um colega e perguntou se ele tinha escutado o jornaleiro anunciar a manchete do jornal. Um outro militar disse ter ouvido alguma coisa como AUMENTO DOS MILITARES

Antes do jornaleiro passar em frente ao portão já havia vários militares com o dinheiro na mão.

E foi um vapt-vupt. Faltou jornal para tantos compradores.

Quando o último jornal foi vendido o menino com os olhos cheios de medo e uma voz baixinha perguntou:

– E agora?

 – Agora? Agora vá embora, ligeiro, não olhe para trás e passe um tempão sem andar por aqui.

Não sabia porque estava nesta viagem de transporte de estudantes do projeto Rondon a se lembrar desta passagem da sua vida. Voava de Santarém para Parintins

Lembrava e ria da cara dos colegas procurando no jornal a notícia que não existia.

Resolveu ir ao banheiro do C-47 que os americanos, após a guerra, tinham doado ao Brasil. E na passagem para o banheiro viu entre os passageiros, universitários que estavam no projeto Rondon, um rosto que lhe pareceu familiar.

Na volta encarou aquele estudante que também o olhava com simpatia e um sorriso bem aberto.

– Gostou de ter vendido todos os jornais?

– Foi a mais rápida venda de jornais que fiz.

– Qual curso está fazendo?

– Medicina.

Em Brasília Geisel era o Presidente da República e nas universidades meninos inteligentes, através do estudo, faziam cursos que mudariam completamente as suas vidas e a dos seus familiares.

Uma enorme alegria dominou por completo aquele piloto. E um grande abraço aconteceu. Lágrimas rolaram nas faces e nos corações daqueles dois homens.

E ainda existe quem diga que a felicidade não existe.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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Categoria(s): Crônica

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