• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 18/05/2008 - 09:58h

O processo

"Alguém certamente havia caluniado Josef K, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum". Com essa célebre frase Kafka inicia um dos romances mais consagrados da história da literatura:

– Afinal, do que K. é acusado? Quem o acusa? São perguntas que tanto o herói como o leitor formulam, sem resposta, no transcorrer de uma obra magnífica, responsável pelas imagens mais poderosas do arbítrio e da alienação em nosso tempo.

"Acho que Kafka não ficaria surpreso com essa história". Foi exatamente isso que pensei quando recebi o e-mail, do colega Cirurgião doutor Paulo Roberto Corsi, responsável pelo Departamento de Defesa Profissional do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, cujo título era: "Decisão curiosa".

Quanto a mim…? Esse e-mail contava a respeito de uma ação indenizatória, não por erro médico, mas sim, por danos morais: alegado pelo autor na inicial, que pretendia "extorquir" o valor de R$ 325.000,00 de um supermercado que lhe tinha vendido carne suína estragada. A decisão proferida pelo MM. Juiz de Direito da 1a Vara Judicial de Belém do Pará foi não só sábia como também, curiosa:

"Excluindo o prejuízo material pelo valor pago pela carne suína estragada, não vejo de que forma isso possa ter causado ao autor um dano a sua moral ou a sua dignidade pessoal; de que forma possa ter sofrido internamente a ponto de pretender a escalafobética quantia, como reparação de tão intensa dor. Dizem os médicos que a maior dor que o ser humano pode suportar é a da Pancreatite aguda. Seria então necessária uma PANCREATITE MORAL para justificar o pagamento de tão elevada indenização. Aliás, por R$ 325.000,00 eu comeria as duas bandejas de carne de porco, apesar de estragada, com bandeja e tudo. Isto posto, julgo improcedente o pedido e condeno o autor ao pagamento das custas do processo e honorários advocatícios".

Realmente, é de estarrecer! A indústria do processo por erros e danos morais se institucionalizou no país. Pede-se indenização por tudo. Não critico a atitude da consumidora que, sentindo-se "lesada" pelo supermercado, tenha entrado com uma ação para reparar seus "danos" – isso é constitucionalmente aceito.

Embora, acredite que a denúncia aos órgãos de vigilância sanitária juntamente com a indenização dos valores pagos pela aquisição da carne estragada já estaria de bom tamanho. O que é de se espantar é o valor solicitado pela indenização. Haja Pancreatite!

Percorrendo a história, constataremos que não é de hoje que se recorrem aos tribunais para se resolverem as querelas pessoais, ocupando, assim, a magistratura de vários países. O julgamento de Sócrates, acusado de "picar como uma vespa seus concidadãos pela busca da verdade", é considerado como uma das grandes barbaridades da humanidade.

Voltaire, em 1777, no seu livro o PREÇO DA JUSTIÇA, já nos advertia: "Se tivesse sido aprovada a sábia lei que determina estar o acusador sujeito à mesma pena do acusado, submetendo-se à mesma prisão, Garasse e seu confrade teriam sido mais comedidos".

O fato é que essa atitude maléfica dos processos por erros e danos morais, entupindo as Varas com lides insinceras, em todos os estados do Brasil, tem posto em risco as demais atividades econômicas, que geram emprego, riqueza e pagam seus impostos. A profissão médica é, portanto, uma das mais atingidas por essa prática.

Os processos por erro médico e danos morais são, a cada dia, uma constante. A coisa tem ganhado uma dimensão tão assustadora que há por parte de alguns médicos, mais precavidos, a disposição de incorporar em suas anamneses algumas perguntas: "Já processou algum médico? Quando pretende processar-me?".

Em caso afirmativo, a consulta poderia até ser suspensa, uma vez que o médico não é obrigado a atender o paciente salvo em caso de urgência, quando não haja outro profissional em condições de fazê-lo. Ouvi dizer até da possibilidade da criação de um cadastro – à semelhança do SPC – de pacientes que se utilizam dessa prática, para consulta on-line pelo médico (o que seria o fim da relação médico-paciente).

A Justiça Brasileira tem que, urgentemente, iniciar uma campanha de educação da nossa população, dando um basta a essa "Farra dos Processos", sob pena de passar pelo constrangimento de ver alguém querer processar Deus, alegando que foi ele o inventor da dor, da doença e do sofrimento humano.

Danado será convencer o carteiro a levar a intimação.

Viva o MM. Juiz de Belém do Pará!

P.S. Texto publicado em 2003 e continua atualíssimo (Nietzsche tinha razão: a “Lei do Eterno Retorno” existe sim)

Francisco Edilson Leite Pinto Junior – Professor, médico e escritor – edilsonpinto@uol.com.br

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Categoria(s): Fred Mercury

Comentários

  1. chicobento diz:

    Artigo muito bem escrito. Apenas uma questão. Qual é a relação direta dos trechos de “O Processo” com tudo que foi escrito depois? Se há, faltou clareza.

  2. Jorge Augusto diz:

    Pobre Edilson! Corporativismo fascista de primeira classe! Saiba, senhor Edilson que ainda é pouco o número de processo contra seus pares irresponsáveis e negligentes! Garanto que os honestos e responsáveis não sofrem processos à toa!

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