Por Marcos Ferreira
Naquela manhã, ao deixar o marido e a esposa grávida à porta da maternidade, o senhor Domingos estacionou o velho Fiat Uno e atravessou a rua para servir-se de um café e fumar um cigarro no quiosque da praça.
Era por volta das sete e meia. Três sujeitos estavam por ali conferindo na tevê do quiosque a partida entre a seleção masculina de futebol do Brasil e o time do Egito, que disputavam uma vaga na semifinal nas Olimpíadas de Tóquio. Durante aqueles minutos, cigarro no bico, o senhor Domingos assistiu à partida. Reclamou da ausência de alguns jogadores e retorquiu a convocação de outros.
— Eles tinham que ter liberado o Pedro.
Um tipo baixote e vermelho alfinetou:
— O senhor só pode ser flamenguista.
— E daí?! — reagiu tragando o cigarro.
— Se pudessem, vocês empurravam o Flamengo inteiro com o uniforme da Seleção — disse outro vestindo camisa do Vasco.
— É muito melhor do que esse seu time de segunda divisão — devolveu o taxista de imediato, com um sorrisinho tripudiante.
Um rapaz cheio de tatuagens interveio:
— Hoje o Palmeiras é muito mais time.
O senhor Domingos ia se emaranhando naquela picuinha futebolística, quando súbito o telefone tocou no bolso da sua camisa. Consertou os óculos no alto do nariz e identificou a chamada. Um vizinho e cliente, com quem ele se acertara na noite passada, o aguardava para uma corrida até a rodoviária.
Sessenta anos de idade, há vinte e cinco na profissão de taxista, o senhor Domingos adquirira a confiança de muitos, notadamente pelo seu perfil simpático e educado, respeitoso, sobretudo, com suas passageiras.
A razoável clientela chegava para acudir o orçamento da casa, obrigações com esposa e filhos recém-chegados à maioridade, e conseguia reservar uma grana para cobrir a parcela do consórcio do sonhado carro zero.
— Quanto foi meu cafezinho? — perguntou.
— Um real — respondeu o dono do quiosque.
Com apenas duas portas, adquirido com alta quilometragem e sem alguns luxos como direção hidráulica, vidros elétricos nem ar-condicionado, o táxi do senhor Domingos, ano 1985, dava sinais de extenuação.
Não raro encostava numa oficina mecânica. Isto apesar de todo o zelo e carinho do proprietário, que cuidava tão bem da sua ferramenta de trabalho quanto da família. Algumas vezes, em tom espirituoso, a senhora Berenice, a esposa, dizia que o marido gostava mais do carro do que propriamente dela.
Quando alguém da família ou um amigo mais íntimo, também em tom espirituoso, fazia um comentário desabonador sobre as condições do padecido Fiat Uno, Domingos não se abalava e respondia bem-humorado:
— Ora essa! Meu carro não é velho, não. Trata-se de um automóvel ainda jovem, com apenas trinta e seis aninhos de idade.
Naquela manhã de julho, enquanto se encaminhava à residência do cliente que tencionava levar à rodoviária, o senhor Domingos topou com uma forte e repentina chuva, fato este que o obrigou a fechar as janelas.
Logo o vidro começou a embaçar e ele dirigia acenando uma flanela contra o vidro, posto que o limpador de para-brisa estava sem funcionar. Diante da pressa e da visão embaçada, ele calculou mal a proximidade de um caminhão ao cruzar a BR-304. A Moça da Foice pegara carona no velho Fiat.
Ao ser retirado das ferragens, o telefone voltou a tocar sobre o peito do senhor Domingos, agora mudo. Um policial do Corpo de Bombeiros ouviu a chamada e achou por bem atender. Podia ser alguém da família:
— Alô — disse o militar num tom grave.
Na outra ponta da linha uma voz feminina:
— Senhor Francisco Domingos, bom dia! Olha, estou ligando para lhe informar que o senhor foi sorteado em nosso consórcio. É isso mesmo. O senhor acaba de ganhar o seu tão esperado carro zero. Parabéns!
— O senhor Domingos não pode atender.
— Preciso dar essa notícia. Ele ficará feliz.
— Não… O senhor Domingos morreu.
Na tarde seguinte, cercado por muitos familiares e amigos, o senhor Domingos foi sepultado junto com o sonho do carro zero.
Marcos Ferreira é escritor
- Texto originalmente publicado na revista Papangu na Rede.
Algo Está acontecendo?
Um abraçaço.
?
Se for o caso, como podemos ajudar?
Boa tarde?.
NR. Boa tarde.
Não entendi patavinas nenhuma.
Magno o nosso querido Marcos Ferreira, há duas semanas que não escreve suas crônicas dominicais; isso me preocupou.
Boa noite.
Ah, entendi. Deve ser a falta de uma boa inspiração. Acontece até com os maiores escritores. Nada demais. Marcos Ferreira não tem motivos para deixar de escrever senão esses mesmos. O homem sabe viver.