Por Marcelo Alves
Como é uma temática da moda, hoje eu vou novamente tratar, misturando o que aqui foi dito nas semanas passadas, do nosso Supremo Tribunal Federal (STF) e do respeito às suas decisões na jurisdição constitucional.
A coexistência em nosso sistema jurídico dos dois modelos de controle de constitucionalidade, concentrado e difuso, dá ensejo a algumas situações no mínimo interessantes. Inspirados no exemplo norte-americano, nós adotamos o modelo difuso de controle. Mas o fizemos de forma capenga, sem adotarmos como regra a doutrina do stare decisis. Isso é causa determinante da falta de uniformidade decisória no controle de constitucionalidade entre nós. Enquanto que, nos EUA, as decisões no controle difuso são razoavelmente uniformizadas pela aplicação da doutrina do stare decisis, no Brasil, pela ausência dessa doutrina, essa uniformidade não existe.
E o pior ainda está por vir. Uma mesma norma é objeto de ação direta junto ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula encarregado do controle concentrado e em abstrato, e, ao mesmo tempo, é também objeto de controle difuso, incidentalmente em casos concretos, em um ou vários órgãos judicantes do país.
Se a multiplicidade de processos no controle difuso gera decisões contraditórias – o que, dada a igualdade perante a lei, já não é desejável – o problema ganha feição bem mais grave quando essa contradição se dá em relação às decisões, em sede de controle concentrado (ou não), do STF, órgão responsável pela guarda da Constituição.
É verdade que possuímos os mecanismos jurídicos para harmonização dos dois modelos de controle ou para, pelo menos, minorar, a um grau aceitável, o problema da falta de uniformidade. Dentre eles estão a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões do STF (especialmente no controle concentrado e em tese, realizado via ação direta), que devem ser fomentados sob pena de se ver a jurisdição constitucional – e o nosso Estado Democrático de Direito como um todo –, sobretudo aos olhos do jurisdicionado, gravemente comprometido.
De fato, distanciando do modelo americano/difuso puro, em que a justiça constitucional é confiada a um conjunto difuso de órgãos jurisdicionais, se adotamos também o modelo europeu/concentrado, com a justiça constitucional atribuída diretamente a uma Corte Suprema/Constitucional vocacionada para tanto, com competência para exercer o controle abstrato (e em concreto, em muitos casos) da constitucionalidade das leis, isso teve sua razão de ser.
O objetivo primordial, com a concentração da atribuição em um Tribunal Supremo/Constitucional, foi afastar o risco de se ver determinada lei tida por constitucional por alguns juízes e tribunais e por outros, não; algo que, em inexistindo a concentração, seria a regra. E isso, para o pai da matéria, Hans Kelsen (1881-1973), como lembra Oscar Vilhena Vieira (em “Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política”, RT, 1994), implicaria, no fundo, descumprir a própria Constituição.
Ademais, se, segundo o princípio da supremacia da Constituição, o restante do corpo normativo (leis, decretos etc.) de um país deve respeitar, formal e materialmente, o que é prescrito ou consagrado em sua Carta Magna, isso deve valer para todos. Repito: todos. Trata-se de uma consequência lógica, e ferir essa isonomia seria ferir o que está disposto na própria Constituição.
Se o poder de dizer se as leis estão ou não em conformidade com a Constituição está concentrado num órgão jurisdicional de cúpula, nada mais natural – e necessário – que suas decisões sejam de seguimento obrigatório para os demais órgãos do Judiciário e do Estado como um todo.
Sem desmerecer o papel constitucional dos demais órgãos do Judiciário, do Poder Legislativo, do Poder Executivo, do Ministério Público, das Forças Armadas e também sem menosprezar os delírios das vivandeiras de plantão (que carecem de tratamento profissional urgente), sobreleva o peso do STF in casu. Devemos – todos, não custa repetir – obediência constitucional às decisões do STF. Ele é o guardião da nossa Constituição. Ele dá a última palavra sobre a Constituição. Assim o diz o famoso art. 102, caput: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (…)”. Assim diz, reza a lenda, o Ministro Moreira Alves: “As decisões do STF não são definitivas porque são certas, mas são certas porque são definitivas”. É assim no nosso Estado Democrático de Direito.
O problema é que alguns, vivandeiras ou não, insistem em sabotar isso.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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