• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 06/08/2023 - 08:20h

Olhos profundos

Por Marcos Ferreira

Getty Images (Foto ilustrativa)

Getty Images (Foto ilustrativa)

Talvez o leitor já esteja farto desse assunto. O assunto dos necessitados, das pessoas que estão por aí na pior, na pobreza extrema, caídas na sarjeta. Talvez eu tenha batido demais nessa tecla. Ah! Que se exploda o teclado!

Naquele dia (já era noite, aliás) fui a um supermercado próximo à minha casa. Fiz algumas compras, especialmente itens para abastecer a geladeira, e me encaminhei ao pátio, onde eu havia deixado a minha moto. Foi aí que avistei, sentadinha na calçada, à meia-luz, uma criança de uns oito ou dez anos. Pareceu-me entregue à própria sorte, rifada entre os perigos e armadilhas desta cidade violenta.

Hoje, transcorrido mais de um mês, resolvi escrever sobre tal encontro. A demora se deve ao fato de que fiquei impactado, congelei, travei enquanto cronista. Isto justamente porque aquela garota não era qualquer uma. Muito diversa dos menores de rua que sabemos existirem na maior parte do mundo. Apiedado, aproximei-me dela. Talvez eu pudesse ajudá-la de algum modo. Sim. Estou convicto de que, muito ou pouco, cada um de nós pode mitigar o padecimento dos desvalidos.

Portanto, como eu ia dizendo, acheguei-me até à frágil desconhecida. E essa aproximação me revelou alguns detalhes graciosos quanto amenos daquela menininha negra, de uma beleza singular. Seus olhos eram garços, magnéticos, profundos, entre o verde e o azul, emoldurados num rosto belo, quiçá exótico.

De certo modo, vale a pena citar, a guria não estava de todo sozinha. Entre seus braços, carinhosamente, segurava um lindo gatinho preto cujos olhos também eram de um azul intenso, luzidio. Um sugeria proteger o outro. Todavia, neste município notoriamente classificado como um dos mais perigosos do planeta, a situação em que ambos se encontravam inspirava temeridade. Ao menos a mim. Tentei conversar com ela, afagar o bichano, mas se retraiu, naturalmente me fazendo compreender que eu não devia ultrapassar o limite do solilóquio a que me restringiu.

Cabelos ondulados caídos nos ombros, miudinha e assustadiça, vestia umas roupinhas humildes e calçava sandálias de borracha. Ainda assim, sobrepondo a humildade, tinha um aspecto íntegro, malcuidada, mas altiva.

Lá estavam aquelas duas criaturinhas ignoradas numa calçada do estacionamento, junto a uma parede. Consumidores de sortidos naipes e perfis iam e vinham sem dar pela presença de ambos. Os pequenos pareciam como que invisíveis à percepção da apressada clientela. Fiz-lhe algumas perguntas e ela me respondeu apenas balançando a cabeça afirmativa ou negativamente. Por exemplo, expressou um não quando lhe indaguei se gostaria que eu lhe comprasse algum alimento.

Não quis. A seguir, porém, ao inquirir se aceitaria um salgado, meneou a cabeça de modo afirmativo. Botei minhas compras no chão, pertinho dela, e voltei para o supermercado no intuito de comprar a iguaria que ela aprovara. Naquele horário, quase oito horas, já não havia no balcão dos salgados muitas opções. Poucas, na realidade. Restavam tão só uma fatia de pizza de calabresa e um rissole de queijo. Peguei os dois, além de uma garrafinha de suco supostamente natural, e fui mais uma vez ao também suposto caixa rápido. Ao todo demorei uns quinze minutos.

Quando cheguei ao local onde os deixara, para minha completa decepção, encontrei unicamente as três sacolas com minhas compras junto à parede. Aquela enigmática dupla havia sumido. De tal maneira que não possuo convicção do que vi. Então, se alguém tiver alguma notícia do paradeiro de ambos, da bela pequenina e do seu lindo gatinho de olhos azuis, gentileza comunicar a este cronista.

Não faço ideia de onde estejam a esta hora, ou se existem só na minha imaginação, contudo, não sendo outra de minhas fantastiquices, sinto que necessitam de nosso amparo. Pois nesta terra, hoje tão marcada pela violência, ouso dizer que até os fantasmas correm perigo. Imaginem dois seres naquelas condições. Depois de um mês e poucos dias, enfim, não tenho nenhuma certeza sobre coisa alguma.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Rocha Neto diz:

    Oi amigo Marcos, “VALE A PENA SERVIR”. Pincei o lema do Lions Club Internacional para fazer um parâmetro comportamental entre uma entidade de cunho internacional e um homem só na multidão prontos para servir, no caso este homem chama-se Marcos, enquanto a entidade em referência serve a muitos devido ao seu grande número de componentes mundo afora, os quais vez por outra se reúnem para mostrar o balanço do seu trabalho, reunião esta regada ao luxo das vestes granfinas e comida puxada ao cardápio burguês com etiqueta francesa e italiana, enquanto que um homem só de nome Marcos, praticou a mesma ação de servir e fez valer a pena. Tenho certeza que a ação do homem Marcos, foi mais autêntica e desprovida do cunho exibicionista que que certas entidades praticam para o mundo social mostrado através das lentes poderosas das estações de TV o que fôra por eles realizado.
    O mundo é assim mesmo! O consumismo desenfreado o status sonhado com o complemento do poder vaidoso, tem feito do homem um animal dantesco em busco do patrimônio material, esquecendo muitas vezes dos seus valores espirituais e humanos, pior que uma enorme maioria esquece da fatura que será cobrada quando a viagem final for realizada.
    Marcos Ferreira, grande escritor e cronista, sim, “VALE A PENA SERVIR” que o coração seja o vetor da ação práticada por cada um, e o Linos Club Internacional possui alguns Marcos, pena que são poucos! Então velho amigo, quando encontrar mais uma menina com ou sem gatinho de olhos azuis, repita a sua grande ação homem generoso que você é.
    Parabens pela peça em tela, e inté o próximo capitulo aqui no BCS.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querido Rocha Neto,
      Sei que não estou sozinho nesse modo de ver e sentir as agruras por que passam muitos de nossos semelhantes. Sei que você, a exemplo de outros, tem essa sensibilidade de alma e coração.
      Forte abraço e até.

  2. Amorim diz:

    Como sempre um filme emocionante.
    Um abraçaço

  3. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Bem impactante! Sensação de vazio por uma ação não completada; acontece! Quantas intenções tivemos e, por um motivo ou por outro, não conseguimos realizar algo que nos deixaria de bem com nós mesmos e com o outro, no caso a garota e o seu gatinho! Chamou a minha atenção o fato de que as sacolas de compras não foram levadas, o que me leva a crer que o criador do conto, acredita na bondade do ser humano; o que é muito bom! Quantas vezes a gente julga pela aparência e associa determinadas características de caráter a algumas condições de aparência! Esse conto tem uma beleza e uma fé de que nem tudo está perdido! Num mundo de interesses e egoísmos, “perder tempo com alguém necessitado”, dando-lhe atenção e tratando-lhe como gente, talvez fosse o que a menina precisasse naquele momento. Um abraço de ótima semana e que tenhamos toda semana a sua presença nesse Blog, querido escritor!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida Bernadete,
      Sei que você, enquanto uma das pessoas mais sensíveis e fraternas que conheço, compreende o quanto esses nossos irmãos que vivem nas ruas precisam da solidariedade e de todo o apoio que pudermos oferecer.
      Grato, mais uma vez, por seu tocante e oportuno depoimento.
      Abraços.

  4. Airton Cilon diz:

    Caro amigo poeta e escritor Marcos Ferreira, esses personagens invisíveis são comuns em nossa cidade, como em todo Brasil. Essa população explodiu de uns anos para cá. É preciso um grande esforço político social para amenizar essa chaga. Enquanto uns padecem, outros “patriotas” mandam milhões em pix pra encher a burra de quem não precisa! Encerro com uns versos da música, “Jornais” da Banda Gaúcha, Nenhum de Nós: ” A calçada não é casa, não é lar, não é nada/ Nada mais do que um caminho que se passa, tão extranho pra quem fica. As palavras no asfalto, nessa vida são tão duras/ O carinho não consola, mas apenas alivia. A calçada não é cama, não é berço, não é nada.
    Nada mais nos faz humanos sem afeto. E o medo é um abraço tão distante de quem fica.”
    mais nos faz humano sem afeto. E o medo é um abraço tão distante de quem fica…” Abraços

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro poeta Airton Cilon,
      Para variar, você é novamente certeiro na sua visão social e política.
      Além disso, do ponto de vista musical, tem sempre uma boa canção, banda ou artista para ilustrar esse nosso chão de estrelas cadentes.
      Forte abraço e até breve.

  5. Marcos Pinto diz:

    Paradigmas espirituais transbordando pelas janelas da alma.

  6. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    O homem se perde diante da realidade banalizada de seus dias. Uma cena registrada pelas lentes da memória de quem ainda resiste e não compactua com essa falta de identidade social.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Concordo com você, prezado escritor Raimundo Antonio.
      O Homem anda perdido faz tempo. Parece que se perdeu desde que descobriu o fogo e não mais se encontrou.
      Então, meu amigo, nem dá para alegar que o problema é o excesso de escuro ou a falta de luz.
      Ótima final de semana para você.
      Saúde e paz.

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